terça-feira, 25 de setembro de 2012

O VELADO HOMOEROTISMO DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Há muita semelhança entre a estrofe de Escavação: " Numa ânsia de ter alguma coisa, / Divago por mim mesmo a procurar, / Desço-me todo, em vão, sem nada achar, / E minh' alma perdida não repousa", com o excerto do 1º parágrafo do Cap. I de A Confissão de Lúcio: "Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido - sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital". Aqui notamos a personalidade vacilante, indecisa, o temperamento frouxo, sem vigor e o espírito dispersivo de Sá-Carneiro, como revelam os sememas de um de seus personagens: "não sei bem como", "achei-me", pois se ele próprio não sabe como foi parar em Paris, quem é que sabe? Um homem incapaz de assumir-se adulto, que vive da mesada do pai e que prefere desperdiçar suas energias físicas e mentais com a boêmia, do que com a faculdade de Direito; ou seja, Sá-Carneiro é um autêntico bon vivant, algo que terá um preço muito caro em sua vida. Outro momento de A Confissão: "Acho-me tranqüilo - sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o futuro. O meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado de um outro. Permaneci, mas já não me sou. E até à morte real, só me resta contemplar as horas e esgueirar-se em minha face...A morte real - apenas um sonho mais denso..." coincide com o que Sá-Carneiro diz no poema Dispersão: "Perdi-me dentro de mim, / porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim." ou "Não sinto o espaço que encerro / Nem as linhas que projecto: / Se me olho a um espelho, erro - / Não me acho no que projecto" ou "Desceu-me n' alma o crepúsculo; / Eu fui alguém que passou. / Serei, mas já não me sou; / Não vivo, durmo o crepúsculo", entre outros versos, revelam a despersonalização, a inquietação ontológica e elementos paúlicos como a voluntária confusão do subjetivo e do objetivo pela associação de idéias desconexas e paradoxais; assim como, pelo vocabulário expressivo do tédio, do vazio da alma. PAÚLISMO O sentido mais predominante em A Confissão de Lúcio é a visão. O autor se vale de parágrafos imensos para descrever os trajes de suas personagens impregnadas de dandismo (como Gervásio Vilanova) ou para descrever os ambientes festivos de Paris. Em relação à presença do vestiário na diegese, é pertinente dizer que através dele o autor irá creditar não só a classe social e/ou o grau de instrução, mas, principalmente, a suposta preferência sexual da personagem ao nível da estereotipia, v.g. "Perturbava o seu aspecto físico, macerado e esguio, e seu corpo de linhas quebradas tinha estilizações inquietantes de feminilismo histérico e opiado..." ( grifo nosso em relação a Gervásio Vila-Nova). O talento de Sá-Carneiro pode ser notado na riqueza de pormenores inusitados quando descreve o traje de um americana amiga de Gervásio: "Um deslumbramento, o trajo da americana. Envolvia-a uma túnica de um tecido muito singular, impossível de descrever. Era como que uma estreita malha de fios metálicos - mas dos metais mais diversos - a fundirem-se numa cintilação esbraseada, onde todas as cores ora se enclavinhavam ululantes, ora se dimanavam, silvando tumultos astrais de reflexos. Todas as cores enlouqueciam na sua túnica." (grifo nosso pág.30). É de perceber-se a sinestesia do silvando tumultos astrais que nos remete à hiper-sensibilidade alucinada de Rimbaud, um legado simbolista que também se constitui num elemento paúlico. Também notamos elementos paúlicos no delírio sinestésico: "Inundava-o um perfume denso, arrepiante de êxtases, silvava-o uma brisa misteriosa, uma brisa cinzenta com laivos amarelos” (Grifo nosso pág.30), ou "essa luz, nós sentíamo-la mais do que víamos (...) Não impressionava a nossa vista, mas sim o nosso tato" (pág.32), ou "listas úmidas de sons se vaporizavam sutis..." (pág. 33), mostrando percepções muito próximos das relatadas por pacientes psicóticos ou por usuários de drogas alucinógenas como a mescalina, o LSD e o Ecstasy. HOMOEROTISMO A Confissão de Lúcio pode ser abordada por diversos aspectos, desde o alardeado, mas, voluntariamente velado homoerotismo, até ao caráter metatextual. Sobre o homoerotismo particular desta obra, percebe-se que ele é permeado por sentimentos de culpa e camadas de estereotipia com fidelidade ao contexto histórico da época. Ao homossexual é vedado o amor, pois ele só poderá amar outro ser do mesmo sexo se travestir-se de mulher. Bem diferente dos gays marombeiros de hoje, um homem não pode amar outro homem enquanto homem, daí a razão dele se desdobrar, alegoricamente, em uma mulher (Marta) e relacionar-se adulteramente com Lúcio - artifício metafórico/ simbólico do autor que acaba comunicando o conflito interior da sua identidade afetiva e sexual através de personagens alter-egos. E Sá-Carneiro tinha com o que se preocupar, pois o homossexualismo era crime na maioria do países europeus de seu tempo. Portanto, seu romance não pode mostrar um relacionamento homossexual transparente, receio do qual o nosso Adolfo Caminha d´ O Bom Crioulo não compartilhou, mas que em compensação lhe rendeu uma série de aborrecimentos. Como esquecer Oscar Wilde, que foi preso e teve bens confiscados por gostar de um rapaz filho de aristocratas? Nem Freud aliviaria a vida dos homossexuais, considerando-os, no mínimo, neuróticos. Mas há uma explicação: todos os clientes homossexuais do pai da psicanálise tinham medo de ser delatados ou presos, comprometendo-se, assim, todo equilíbrio psíquico e emocional. METATEXTUALIDADE A narrativa de Sá-Carneiro exibe um aspecto que interessa aos artistas, sobretudo aos escritores, trata-se do metatextual. No Cap. I, pág.22, Lúcio comenta o modismo do pedante Gervásio, que gosta de uma nova escola literária: “(...) o Selvagismo, cuja novidade reside na impressão de seus livros sobre diversos papéis e com tintas de várias cores, numa estrambótica disposição tipográfica. Os poetas e prosadores selvagens traduzem suas emoções unicamente em jogo silábico, por onomatopéias rasgadas, bizarras: criando novas palavras que coisa alguma significavam e cuja beleza ou virtude reside justamente em não significar coisa nenhuma. Esta escola era tão inconsistente que só publicou um livro.” O autor pode estar falando do Dadaísmo de Tzara. Lúcio assim define as escultura de Gervásio Vila-Nova: "As suas obras eram esculturas sem pé nem cabeça, pois ele só esculpia torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos, onde, porém, de quando em quando, por alguns detalhes, se adivinhava um cinzel admirável." Já esta passagem tanto pode referir-se ao Expressionismo quanto ao Futurismo de Giacomo Balla. Falando sobre as reuniões artísticas (espécie de saraus) na casa de Ricardo e Marta, Lúcio comenta, amargo e mordaz, a literatura de um amigo de Raul Vilar : "triste personagem tarado que hoje escreve novelas torpes desvendando as vidas íntimas dos seus companheiros, no intuito (justifica-se) de apresentar casos de psicologias estranhas e assim fazer uma arte perturbadora, intensa e original; no fundo apenas falsa e obscena." No Cap.II, pág.39, Gervásio fala para Lúcio - "Creia, meu querido amigo, você faz muito mal em colaborar nessas revistecas lá de baixo... em se apressar tanto a imprimir os seus volumes. O verdadeiro artista deve guardar quanto mais possível o seu inédito. Veja se eu já expus alguma vez...só compreendo que se publique um livro numa tiragem reduzida; e a 100 francos o exemplar, como fez o ...(e citava o nome do russo chefe dos "selvagens"). Ah! Eu abomino a publicidade!..." Esta passagem flagra a visão glamourizada do artista incompreendido, na torre de marfim, isolado dos demais, compartilhada por vários artistas de seu tempo e satiriza a atitude vanguardista de alguns de seus contemporâneos. CONSIDERAÇOES FINAIS A obra de Mario de Sa-Carneiro é uma oportunidade para quem se interessa por gay studies e sua relação com a literatura portuguesa modernista.

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