segunda-feira, 17 de setembro de 2012

FIGURAÇÃO E IDENTIDADES PÓS-MODERNAS NO 'ESTORVO' DE CHICO BUARQUE




FIGURAÇÃO E IDENTIDADES PÓS-MODERNAS NO ESTORVO DE
CHICO BUARQUE

A figuração ou representação artística é uma forma de apreensão da realidade. E toda apreensão pressupõe intelecção, seleção ou redução do material capturado no real que circunda o artista.

Figurar é recortar um estrato da realidade e traduzi-lo em signo.

Muitos foram as concepções de representação artística na história da humanidade.
Para Sócrates, a arte idealizaria o objeto representado; enquanto para o seu discípulo Platão, a arte simularia o objeto, simularia o real.

Aristóteles, dissonante de ambos, dirá que a Arte nem duplica e nem copia o real, o objeto. Ela procura o essencial. Não é, portanto nem completamente verdadeira nem cabal ilusão. Ela busca o verossímil.

Na Renascença, com a apoteose matemática de Giordano Bruno e Galileu Galilei, Leonardo da Vinci entenderá a representação artística como meio de analisar a Natureza e de traduzi-la em linguagem matemática. Deste modo, a arte perde o caráter servil que tinha na Idade Média e passa a ter um 'status' paralelo à Ciência e à Filosofia. Assim, a Pintura ganha uma dignidade teórica.

Diderot verá na Arte simultaneamente uma reprodução de fatos comuns com a escolha dos
excepcionais e os traços exteriores da Natureza com aqueles que a fantasia inventa.
Segundo Diderot, enquanto que na Ciência, a verdade é sempre geral, reduzindo a realidade a determinadas formas abstratas, nas quais se dissolvem os aspectos singulares dos fenômenos; na Arte, por sua vez, há predominância tanto do individual como o do sensível. Diante de uma representação artística não nos interessa saber se o objeto representado existe ou não, mas se o artista, respeitando as leis da Natureza, o tornou possível.

A partir de Kant, em vez de se especular acerca da natureza das coisas, dos fins morais da conduta e da essência do Belo, ou seja, de se buscar a ontologia das coisas; o estudioso deve esquecer Deus, finalidade e contemplar os objetos independente de sua existência ou não. Deste modo, a experiência estética, possui valor autônomo, independendo de qualquer finalidade exterior; é um fim em si mesma.
Para Imanuell Kant, a representação artística sugere e veicula o real.

Em Schiller, a representação artística enfeita e configura o objeto, o real, o mundo. Ou seja, o jogo estético é um ornamento, não está na esfera das necessidades naturais da vida e independe dos interesses práticos.

Para Hegel, a arte pertence juntamente com a Religião e a Filosofia, ao domínio do Espírito Absoluto.

A partir do voluntarismo de Schompenhauer e Nietzsche, a premissa mimética da Arte e seu compromisso com a Razão será dinamitada por uma suspeita contra o totalitarismo da racionalidade ocidental. Assim, somos levados ao lado sombrio e irracional da Modernidade.

Nietzsche criará dois impulsos para a apreensão da realidade: o dionisíaco e o apolíneo. O primeiro descrito como a inclinação do ser humano para o êxtase, a embriaguez, o transbordamento emocional e o segundo descrito como a inclinação à contemplação e sobriedade.

Henri Bérgson a partir da trilha aberta por Schompenhauer e Nietzsche, fará uma analogia entre o processo de conhecimento e da criação artística, pois ambos revelam a capacidade inerente do homem organizar a sua experiência por meio de símbolos, que são ao mesmo tempo, formas de sentir e conceber.

A expressão artística, segundo Benedetto Croce, não existe sem que os conteúdos de
consciência, os estados sentimentais ou emotivos experimentados, as vivências, enfim, se concretizem numa forma, termo final do processo de criação, quando as intuições convertem-se em imagens.

Depois desse preâmbulo, começamos a indagar sobre o modo de figuração pós-moderno e
somos levados à década de 90 intuída na diegese de "Estorvo" de Chico Buarque.

Se a figuração da realidade assume matizes sombrios a partir do pessimismo schompenhaueriano e do niilismo nietzschiano, como se produto de uma ressaca dos anos de apologia à tecnociência e à racionalidade intrumentalizante do ser humano pelos pensadores iluministas e seus discípulos positivistas; cabe indagar se há alguma diferença entre a figuração moderna e figuração pósmoderna da realidade.

Quem figura também se revela e se pronuncia no que figurou, assim, perguntamos também pela natureza, pela identidade do sujeito pós-moderno.

Vejamos as marcas pós-modernas descritas pelos estudiosos: fragmentação, superficialidade, perda da ideia de identidade una e estável, como resultado do deslocamento da subjetividade,resultando na descrença às metanarrativas e à unicidade subjetiva (Hall, in: Identidades culturais na Pós-modernidade).

Narrado em primeira pessoa, "Estorvo" revela a história de um indivíduo sem nome, sem direção,sem propósito e sem utopia numa cidade grande não nomeada, ocorrida provavelmente nas décadas de 80 e 90.

O livro é uma série de narrações descontínuas, desterritorializadas e circulares desse personagem amoral, frívolo e superficial, sem demarcações claras de espaço e tempo, que perambula a esmo por uma cidade, movido apenas por instintos primários e com vínculos pessoais esgarçados.

O aleatório sempre presente no romance dá uma configuração onírica, perto do pesadelo à obra:

" Vou regulando a vista, e começo a achar que conheço aquele rosto de um tempo distante e confuso. Ou senão cheguei dormindo ao olho mágico, e conheço aquele rosto de quando ele ainda pertencia ao sonho" p.11

A sensorialidade alucinada cria uma atmosfera nauseante:

"Recuo cautelosamente, andando no apartamento como dentro de água" p.12

A influência intersemiótica de outros códigos de linguagem levando a estetização do real:

"Assim ele me viu chegar, grudar o olho no buraco e tenta decifrá-lo, me viu fugir em
câmera lenta" p.12

"para refrescar os ambientes, volto à sala com tonturas, e tenho a impressão de que ela está invertida" p.47

"(...)porém, mais tarde penduramos por toda a parte cortinas brancas, pretas, azuis,
vermelhas e amarelas, substituindo o horizonte por um enorme painel abstrato." p.15

"Eu sempre achei que aquela arquitetura premiada preferia habitar outro espaço" p.15

"Fixo o olhar no muro, ouço a bola que pipoca no piso sintético(...) a voz do meu cunhado cada vez mais remota, e parece que estou sendo alçado aos poucos, como se se minha cadeira estivesse numa grua." p.116

"No meio do quarto, a cama de casal me apareceu como uma instalação insensata" p.59

Em "Estorvo" um certo interseccionismo temporal-espacial, cria uma cronologia confusa e paroxística, como no capítulo Dois em que o narrador-protagonista retoma ao sítio da família onde morara cinco anos antes, ao deitar-se na cama ele se obsidia com a presença de um estranho do outro lado do olho mágico do apartamento. Aí o leitor embaralha-se por não saber em que território exato se encontra o personagem: no sítio ou no apartamento?

CAPÍTULO 3

O rapaz negro grande, corpulento e gordo de sunga de borracha, vem empurrado pelos guardas, os pulsos algemados e o corpo curvado repete-se em outro capítulo mais a frente.

A obsessão paranoide do personagem lhe atormenta:

" Não adianta ficar aqui parado. Eu não posso me esconder eternamente de um homem
que não sei quem é. Preciso saber se ele pretende continuar me perseguindo." p.51

OLHAR DE SUPERFÍCIE

O narrador passa pelas coisas com extrema indiferença e alienação, como se os fatos não guardassem em si significações profundas. Que se desdobra na relação com o outro marcada pelo afastamento e pela indiferença.

" Pensei que ela fosse dizer 'tá satisfeito?', mas não diz mais nada, fica deitada de bruços, soluça com o corpo inteiro, e não sei o que fazer. Só posso olhar o corpo dela se deitando, o lado esquerdo bem mais que o direito e, olhando aquilo, de repente me vem um forte desejo. Eu mesmo não entendo esse desejo, é contra mim um contrassenso, pois se ela agora me chamasse, e com a boca molhada dissesse 'vem', ou 'sou tua', ou 'faz comigo o que der prazer', talvez eu não sentisse desejo algum." p.53

A FALTA DE PROPÓSITO

"Paro no meio-fio e faço de conta que espero um táxi. Um táxi freia e eu saio andando com a mala, fingindo conferir a numeração dos edifícios. Dobro a esquina e tomo uma rua sem movimento; talvez um assaltante me livre da mala.Com o sono em dia e de banho tomado, poderia andar por aí até amanhã, sem compromisso. Mas um homem sem compromisso, com uma mala na mão, está comprometido com o destino da mala" p.53

A PERDA DE IDENTIDADE UNA E ESTÁVEL DO NARRADOR:

"Teria escolhido uma roupa adequada, se bem que ali haja gente de tudo que é jeito; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixador, de cantor, de adolescente, de arquiteto, de paisagista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de miliar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropo, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de literato, de astrólogo, de fotógrafo, de cineasta, de político, e meu nome não estava na lista" p.53


"Meu cunhado me alcança com o amigo grisalho, a quem apresenta dizendo 'é esse’. O
grisalho diz que é sempre assim, que toda família que se preze existe um porra-louca' p.57

CAPÍTULO 4

O narrador, escondido dentro de um closet, esbarra numa bolsa e, ao enfiar a mão, toca nas joias da irmã. Num parágrafo ele diz que deixou as joias no lugar que encontrou; no outro ele pega as joias e deposita nos bolsos da calça.

CAPÍTULO 5

" Ando na relva para lá e para cá, e para qualquer lado que eu vá o morto me olha de
frente, mesmo sem virar o rosto, parecendo um locutor de telejornal mudo." p.67

O narrador protagonista negocia as joias da irmã que roubou no cap. 04 com o submundo do crime.

"Há um videogame parado na televisão, carros de fórmula 1 no grid de largada" p.72

"O céu amanhece encarnado, e vem por aí um sol rancoroso" p.75

VÍNCULOS PESSOAIS ESGARÇADOS

"Meu amigo bebia comigo na piscina, e àquela altura a sua conversa já não fluía. Acho que falava da literatura russa, mas não tenho certeza, pois as palavras saíam enroladas e se perderam. Mas a sua imagem me volta cada vez mais nítida; lá está a correntinha de ouro no pescoço, meio embaraçada, a pinta cabeluda logo abaixo do cotovelo, as costelas saltada no flanco feito um teclado, o calção branco com três listas verdes verticais. Só não consigo me lembrar dos pés do meu amigo. Vivíamos descalços, e não me ocorre ter olhado alguma vez aqueles pés. Nunca reparei se eram grandes ou bonitos. Não sei dizer se os pés do meu amigo eram enormes, como os dos professores de ginástica assassinado." p.76.

IMPRECISÂO

No cap.06 o leitor é informado que o professor de ginástica assassinado pelo michê e um amigo poeta do narrador-protagonista não são a mesma pessoa.(p.76)

Já na p.77 e no paragrafo seguinte passar a ser a mesma pessoa através do recurso à
imaginação, reminiscência.

"Imagino meu amigo recebendo rapazes no apartamento. Meu amigo no sofá da sala,
tomando Campari e dizendo poesia para os rapazes. Com os pés descalços no sofá, mas
disfarçados entre as almofadas, meu amigo passando os cabelos por trás da orelha, e imagino algum rapaz se irritando com coisa toda. Meu amigo abrindo o álbum dos poetas franceses, e o rapaz se encolhendo no sofá. E enchendo-se de ódio, e sofrendo de um outro ódio por não entender que ódio cruzado é aquele que o domina, e que é feito de muita humilhação e que é desprezo ao mesmo tempo. Imagino a poesia sendo interminável e o rapaz enlouquecendo, indo buscar uma corda no varal, ou uma faca na cozinha, mas daí pra frente já dá mais pra imaginar, porque o meu amigo nunca seria professor de ginástica" p.79.

O único índice textual que intersecciona o amigo poeta e o professor de ginástica num só personagem é a ideia-fixa que o narrador-protagonista tem pelos pés de ambos.

OLHAR DESARMADO QUE NADA ESPERA

Este olhar "abandona os combates". Nada espera, não distingue oposições e não crê em
militância.

"E disse que eu devia fazer igual ao escritor russo que renunciou a tudo, que andava
vestido de camponês, que cozinhava seu arroz, que abandonou suas terras e morreu numa
estação de trem. Disse que eu também devia renunciar às terras, mesmo que pra isso tivesse de enfrentar minha família, que era outra bosta. Também eram bosta toda lei vigente e todos os governos; e o eu amigo começou a se inflamar na varanda, gritando frases, atirando pratos e cadeiras no pátio, num escarcéu que acabou juntando o povo do sítio para ver. Ele gritava 'venham os camponeses' e os camponeses que vinham eram os jardineiros, o homem dos cavalos, o caseiro velho e sua mulher cozinheira, mais os filhos e filhas e genros e noras dessa gente, com as crianças de colo. Várias vezes o meu amigo gritou ' a terra é dos camponeses!' e aquele pessoal achou diferente". p.78

A RECUSA DE DAR SIGNIFICADO À EXPERIÊNCIA

" Dessa noite eu não me esqueço porque terminou na cidade, num apartamento de
cobertura perto da praia, onde uns estudantes de antropologia comemoravam a formatura. Não conhecíamos ninguém, e não sei como fomos parar naquele lugar" p.78

FALTA DE PROJETO

"Penso que, quando o ruivo vender as joias, o meu quinhão dê para vier o que, oito meses, um ano, talvez mais. Talvez dê para viajar, conhecer o Egito, ir para a Europa e andar no metrô onde as mulheres usam joias. (...)Não me desagrada estar assim suspenso no tempo, contando os azulejos da piscina, chupando as mangas que o velho me trouxe" p.80

DESORIENTAÇÃO TEMPORAL

"Acordo sem saber se dormi pouco ou demais. É um meio de tarde, mas não sei de que
dia" p.83

" Sei que passa um pouco do meio-dia porque o movimento dos carros é intenso por igual nos dois sentidos" p.99

CAPÍTULO 8

Quando o narrador-protagonista tenta deixar a mala de maconha (trocada pelas joias da irmã) no apartamento do amigo, ao sair do lugar ele vê o negro gigante e gordo de sunga de borracha com estampa imitando onça, vindo gingando na avenida no meio do engarrafamento, dirigindo-se ao edifício do amigo com um canivete na mão, que descascava uma laranja. O leitor pode perceber algo de familiar nesta cena e ela é antecessora da cena em que o mesmo negro gigante de sunga saí do apartamento algemado pela polícia. Só que no cap.03 ela é a conclusão de uma sequência que iniciou no Cap.08, ou seja, a enunciação dissolve e inverte a causalidade temporal.

CONSIDERAÇOES FINAIS

O proposito deste ensaio foi esmiuçar a estreia do compositor e cantor Chico Buarque como romancista. E no nosso entender foi uma estreia promissora, que situa o sexagenário sambista carioca como um excelente realizador de literatura contemporânea.

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