terça-feira, 25 de setembro de 2012

AS IMPLICAÇÕES DO DUPLO-MARX

Este texto é mais um brainstorming sobre a questão, do que propriamente um ensaio científico seguindo todas as regras do cânon metodológico. Parte da perplexidade perante o contato com a afirmação da existência de um ‘duplo Marx’, anunciada aos quatro ventos por um imenso tecido conceptual auto-proclamado como Teoria Crítica Radical. Busca ver as implicações deste Marx duplicado e procura - a partir do conceito da polifonia elaborado pelo lingüista russo Mikhail Bahktin - colocar o problema em outros termos. O DUPLO MARX A tese do ‘duplo Marx’ é defendida por um organismo internacional denominado Movimento pela Teoria Crítica Radical ou Internacional Emancipacionista. Tal instituição é composta por uma gama heterogênea de pensadores e atores do que vem sendo chamada de esquerda não-oficial. Quando se diz heterogênea, é porque parece não haver uma homogeneidade conceptual entre seus membros. E isto fica claro, às vezes, num único documento lançado pelo grupo. Por exemplo, na brochura O Eterno Sexo Frágil? de autoria de Robert Kurz e Roswitha Scholz, publicada no Ceará pela União das Mulheres Cearenses, é patente a discordância entre esposo e companheira (os autores são casados), em que a feminista alemã dá alfinetadas no grupo/revista liderado pelo marido, a saber: o (a) controvertido(a) movimento/revista Krisis. E isto é ruim? Pensamos que não, pois olhando retrospectivamente, percebemos que a falta de homogeneidade é que produziu as coisas mais interessantes do pensamento humano: desde a experiência fundadora da Padaria Espiritual no Ceará do século XIX até a Teoria Crítica de Frankfurt. Quem são os outros atores deste Movimento Pela Teoria Crítica Radical? A resposta conduz a idiossincrasia heterogênea da origem de seus membros. Entre eles citaríamos o ensaísta Jorge Paiva, brasileiro maoísta que lia Guy Debord em 68; Anselm Japp, um ensaísta alemão que mora na Itália e escreve em italiano; Enrique Dussel, professor universitário mexicano; Ruy Fausto, filósofo, professor da USP; Moishe Postone, professor da Universidade de Chicago; Ernst Lohoff, co-editor da Revista Krisis; entre outros. Segundo Jorge Paiva, o movimento também se espalha pela Áustria, Portugal, Espanha e África do Sul. O que permeia estes teóricos de origens tão díspares é o conceito capital do ‘duplo Marx’, categoria basilar geradora de outras categorias. A Lingüística diz que toda palavra ou signo ativam esquemas cognitivos prévios. Esmiuçando no Dicionário, o termo ‘duplo’ quer dizer dobrado, duplicado; que contêm duas vezes a mesma quantidade. O adjetivo ‘duplicado’ nos remete a outro adjetivo, ‘dúplice’ e somos surpreendidos por uma definição dicionarizada que registra um aspecto pejorativo da coisa, pois dúplice é o que é duplicado, duplo, mas é também o que tem fingimento ou dobrez. Assim, seríamos levados a existência de dois Marx: um verdadeiro e outro falso. Aqui acabamos entrando no perigoso terreno do juízo de valor. Pois quem teria capacidade de julgar e apontar o Marx verdadeiro e o Marx falso construídos pelo movimento operário? E para piorar as coisas, lembramos daquele episódio em que o próprio Marx disse categoricamente: - Não sou marxista. O que significa o duplo Marx na visão da Internacional Emancipacionista? Significa a existência de dois Marx num mesmo pensador. O Marx exotérico da teoria da mais-valia e, por conseguinte, da teoria da exploração; e o Marx esotérico da teoria do valor e respectivamente da teoria da alienação. E o processo se complica, porque segundo eles não se trata de uma divisão cronológica, como por exemplo alguns teóricos insistem na existência de um Jovem Marx e um Marx maduro. O que pareceria natural e já aconteceu em outros setores: um Lacan freudiano (do início da carreira) e um Lacan lacaniano (da maturidade). O problema não é esse. É outro. Os teóricos da Crítica Radical afirmam que esse ‘duplo Marx’ coexiste numa mesma época e numa mesma cabeça. Desse modo, o 1º volume do “Capital”, dedicado à Mercadoria, nega os volumes restantes. Aliás, eles informam, baseados provavelmente em Rosdolsky e Mézáros, que a introdução do “Capital” foi escrita depois da obra “pronta”. Assim, flagramos um processo de formatação teórica “sui generis”: um pensador que começa escrevendo o final de uma obra, para depois elaborar seu início. Uma obra muito discutida e citada pelos emancipacionistas que revelaria claramente a duplicidade de Marx é o livro “Grundrisse”. Outro fenômeno “sui generis” na trajetória intelectual de Karl Marx. Livro denso e complexo, lançado postumamente em edições precárias e reduzidas (pouco mais de 300 exemplares), o “Grundrisse” só vai aparecer em traduções francesas, espanholas e inglesas na década de 70 do século XX. E, diga-se de passagem, até pouco tempo atrás a obra não contava com uma tradução portuguesa, o que revela sintomaticamente o descaso da esquerda brasileira pelo seu conteúdo tão controvertido. Nesta altura dos acontecimentos, quando somos apresentados a um Marx duplicado ou dobradiço, vem automaticamente a associação com a esquizofrenia. Segundo João-Francisco Duarte Júnior em “O que é Realidade” – 8ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1991: a esquizofrenia seria a dificuldade do esquizofrênico em erigir para si mesmo uma identidade una e coerente, fragmentando-se numa multiplicidade de “eus”. Observando o alcance da Teoria de Marx, poderíamos detectar a existência de um Marx filósofo, um Marx economista, um Marx político, entre outros, num perpétuo rodízio intelectual. Desse modo, a categoria ‘duplo Marx’ mostra-se inadequada para captar a complexidade da obra de Karl Marx. MARX: ESQUIZOFRÊNICO OU POLIFÔNICO? A teoria da Polifonia elaborada pelo lingüista russo Mikhail Bahktin (não por acaso, um marxista) é a que parece dar melhor conta da questão. Segundo o lingüista russo a polifonia se dá através do processo da intertextualidade. Ou seja, cada texto é composto da soma de outros textos anteriores. Cada texto recupera as vozes de um texto anterior, seja confirmando ou negando-as. Desse modo, Karl Marx (aqui um metonímia) dialoga com Proudhon, Hegel, Smith, Ricardo, Aristóteles. Assim, Karl Marx seria uma espécie de palimpsesto onde estariam sobrepostas as vozes e marcas de pensadores anteriores e contemporâneos de Marx. A maior prova deste argumento seria a obra “Miséria da Filosofia” que dialoga com “Filosofia da Miséria” de Proudhon. Quando dizemos diálogo não se trata de uma alegre conversa de compadres, pois o diálogo pode ocorrer também de forma tensionada. Chegamos assim, através da teoria da polifonia, a uma discordância da idéia de um duplo Marx. Pois examinando a complexidade da obra do pensador alemão, chegaríamos à conclusão não de um duplo, mas de um quádruplo ou óctuplo Marx, ou seja, existe Marx ao gosto do freguês, ao gosto do intérprete. Ou será que o Marx do PC do B é o mesmo do PCR ou o do PT ou o da LBI? Desse modo, propomos não um duplo Marx, perdido entre os pilares da ponte que separa O Capital do Grundrisse, mas um Marx polifônico que traz em si uma babel de vozes e referências da experiência humana.

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