segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

O SAGRADO NA PÓS-MODERNIDADE

O SAGRADO NA PÓS-MODERNIDADE AUTOR: Charles Odevan Xavier “Somos a primeira civilização na história do mundo a não ter centro, transcendência, sentido para a vida que a informe enquanto civilização” André Malraux Para falar do Sagrado evoco teóricos diversos, sem me prender a nenhum deles. Poderíamos citar as pesquisas de Mircea Eliade, Frank Usarsky, Carlos Mendoza-Álvarez, Gianni Vattimo e Luís Felipe Pondé. O recorte temporal situa-se na chamada pós-modernidade e para entendê-la evoco teóricos específicos como Jameson, Eagleton, Lyotard e Habermas. O VOCÁBULO ‘SAGRADO’ “Sagrado [Do lat. Sacratu] adj. 1. Que se sagrou ou que recebeu a consagração. 2. Concernente às coisas divinas, à religião, aos ritos ou ao culto; sacro, santo. 3. Inviolável, puríssimo, santo, sacrossanto: sagrado amor. 4. Profundamente respeitável; venerável, santo. 5. Que não deve ser tocado, infringido, violado: os sagrados direitos do homem. 6. A que não se pode faltar; que não se pode deixar de cumprir: dever sagrado.” Novo Dicionário Aurélio “Toda religião opera com a ideia de sentido” Luís Felipe Pondé A definição do Dicionário sugere ao leitor diversos campos semânticos, mas quase sempre se ligam à noção do solene, do sério, do grave. Ou seja, não se pode lidar impunemente com o sagrado. Ele por si só exige respeito. Luís Felipe Pondé diz que o Sagrado define por ser: sempre aquilo que é; tem o ser em si; não depende dos outros. Poderíamos até questionar Pondé na seguinte observação: se o sagrado é independente do homem; e se o humano não existisse, existiria o sagrado? Se não vejamos. Dizem os astrofísicos que daqui a milhões de anos o Sol vai entrar em colapso, causando a extinção da vida na Terra. Então quem iria cultuar os deuses a partir desta data? Ou será que, justamente nessa efeméride, estaríamos todos no além? Isso partindo do pressuposto que a religião tenha razão. Voltando a Pondé ele dirá que toda vez que o sagrado se manifesta, ele altera a relação do ser humano com o tempo e o espaço. Ou seja, entendemos que só o homem consegue sacralizar o tempo e o espaço no qual está imerso. Não foi encontrado altares em nenhum formigueiro para o Deus formiga ou em nenhuma colméia ex-votos para a Deusa abelha. MÁXIMA SECULARIZAÇÃO OU RETORNO DO RELIGIOSO NA PÓS-MODERNIDADE? Como falar do Sagrado no seio de nossa época, que se debate entre o niilismo e o retorno do fundamento. Somos herdeiros do Iluminismo, cidadãos e crentes vivendo no século XXI no Ocidente, todos somos devedores do patrimônio espiritual judeu e cristão que foi vertido da maneira predominante na valiosa ânfora da cultura Greco-romana. E há autores, como o filósofo italiano Gianni Vattimo, que até defende a tese de que é este patrimônio da cultura judaico-cristã que serviu de esteio para a secularização da modernidade e pós-modernidade. Falar em fé – ou a antiga pistis dos gregos, a fides dos latinos, a crença dos modernos – na experiência vivida pelos seres humanos que vivem num mundo desencantado, no meio de escombros produzidos pelo colapso das grandes narrativas e pela crise de credibilidade das grandes instituições modernas (família, universidade, Estado, Igreja). O contexto cultural da modernidade tardia (Habermas) se apresenta aqui sob o ângulo dos sintomas da busca do espiritual, vivida por pessoas e comunidades de crentes, e ainda pelas coletividades em geral, de diversas formas: segundo a primazia do emocional, ou como busca de um fundamento, ou, mais ainda, da consciência do Nada. Trata-se, assim, de um verdadeiro sinal dos tempos pós-modernos que pede uma investigação para discernir aí um sentido salvífico na terminologia de Carlos Mendoza-Álvarez. No limite do colapso da modernidade, após a queda dos totalitarismos da razão, da técnica e do capital, a humanidade está confrontada, pela primeira vez em escala global, com o risco real de aniquilamento total. O retorno do sagrado, que a modernidade acreditara ter suprimido, se apresenta freqüentemente sob a forma de renascimento da religião segundo formas emocionais, como estranha combinação de fé e afirmação narcisista típica de um sujeito ameaçado. Decerto, o religioso (fricção entre o crer e o crido) é um espaço ambíguo no qual a subjetividade e a transcendência s se tocam às vezes, se mascaram e quase nunca se limitam mutuamente. Deste modo, o termo religião não é sinônimo do espiritual, mas, muito pelo contrário, representa freqüentemente seu abafamento, seu disfarce ou, ao menos, seu mascaramento segundo o páthos do sentimento tresloucado, da emoção irracional e da certeza de uma suposta manifestação divina no meio da banalidade cotidiana, experiência que o faz explodir para além de seus limites. O frei mexicano Carlos Mendoza-Álvarez prefere empregar o termo espiritual no lugar do religioso, já que aquele designa mais especificamente a busca própria dos místicos, freqüentemente vivendo ao revés do sistema doutrinal e moral dominante, no sentido de uma indagação levada a efeito na discrição, no espaço religioso, consciente de seus próprios limites e evocando um estado de espírito apto para o possível despertar para os mistérios, percebidos com muita dificuldade por meio do ato religioso. AS IMPLICAÇÕES SOCIAIS DA MÍSTICA Tanto uma como outra forma do espiritual, ou seja, tanto o religioso como o místico, se chamam reciprocamente, seja para justificar sua existência segundo a ordem da contradição, seja na confrontação para calibrar seus próprios limites um diante do outro, ou, mais ainda, para pôr em marcha uma estratégia de subsistência no meio de agressões mútuas. Segundo Mendoza-Álvarez, isto se explica porque o espiritual sempre se encontra ancorado no social e no político: o lugar de todas as identidades, pertenças e vontade de domínios, mas também o de todas as reconciliações. Assim, mais que uma evasão do mundo, o espiritual designa uma forma de estar-no-mundo marcada, ao mesmo tempo, pela recusa da incerteza do real e pela sede de transcendência. Essa maneira de ser-no-mundo anseia, por um lado, protestar contra o sofrimento do inocente e , por outro, nos ensina a viver a vida posta na própria finitude para denunciar aí o caráter efêmero da beleza e do amor. Efetivamente, no discurso moderno, quando se fala de sagrado, designa-se aquela esfera própria das tradições da humanidade em que se nutre a relação com Deus através de livros sagrados, de mediadores chamados frequentemente de profetas, de lugares privilegiados para o contato com a divindade, bem como uma série mais complexa de rituais, calendários litúrgicos e seculares, prescrições éticas, códigos jurídicos, costumes alimentares e arte sacra. MODERNO VERSUS PÓS-MODERNO Pode-se contrapor a pós-modernidade a modernidade no sentido, de que fala Pondé. O homem moderno achava que a razão poderia organizar o sentido do mundo. Já o homem pós-moderno, pelo contrário, está fazendo o luto da razão como instância de significado. O pós-moderno significa, assim, filosoficamente a ressaca da razão. E como ficam fenômenos peculiares como o neo-pentecostalismo e a chamada espiritualidade new age, em face deste cenário específico? Ambos os fenômenos renderiam monografias e tratados separados, mas em linhas gerais pode-se afirmar que os neo-pentecostais são uma reação à petrificação religiosa, mergulhando a experiência religiosa, que antes era solene, no frenesi extático das leis de economia de mercado e nos apelos midiáticos da sociedade de consumo. Ou seja, aqui resumi o que pode ser entendida como a tal da ‘teologia da prosperidade’. Em tempos que já há mais laços familiares mais consistentes ou de pertença comunitária da zona rural pré-moderna; as igrejas neo-pentecostais vêm preencher a lacuna da ânsia de qualquer pertencimento que seja, ainda que seja um pertencimento ruim ou que seja seduzido pelos apelos obscurantistas do fundamentalismo. Já os new ages seriam o outro lado da moeda pós-moderna. Enquanto os neo-pentecostais buscam igrejas lotadas, climatizadas e barulhentas; onde, muitas vezes, se apropriam de técnicas litúrgicas das religiões afro, que dizem combater; os new ages preferem o atendimento individual e personalizado dos ‘personal-spirituals-trainers’ ou leia-se: tarólogos, antropólogos, numerólogos, bruxos, gurus, cabalistas, instrutores de yôga e massoterapeutas...Sempre tendo em mente que não se poderá esquecer do Cartão Visa – o verdadeiro Deus de nossa época. Pesquisador e ensaísta.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

ARTE CONTEMPORÂNEA NO TERMINAL SIQUEIRA EM FORTALEZA

"No dia em que os teares tecerem sozinhos e as cítaras tocarem sozinhas, o homem será livre” Aristóteles, filósofo da Grécia Antiga. Esta resenha pretende analisar as obras do 59º Salão de Abril - Mostra Nacional de Artes Visuais - Arte: Desejo e Resistência, realizado de 14/Out/08 a 23/Nov/08 dentro do Terminal de ônibus do Siqueira. O evento foi promovido pela SECULTFOR, órgão da Prefeitura Municipal de Fortaleza. Teve a curadoria de Andrés I. M. Hérnandez, Ricardo Resende e Siegbert Franklin. Esta resenha não intenta cobrir o evento como um todo, que se realizou em três lugares: o terminal de ônibus do Siqueira (na região sul de Fortaleza, área extremamente pobre), no terminal do ônibus do Papicú (na região leste de Fortaleza, a chamada área nobre da cidade) e no Centro de Referência do Professor (que fica no Centro da capital cearense). Pretende-se aqui apenas analisar as obras expostas no Terminal de ônibus do Siqueira. Fazer crítica de artes-plásticas é uma tarefa quase ingrata e quase inútil, quando se parte do pressuposto de que o crítico seria uma espécie de relações públicas a divulgar artistas (Terry Eagleton). A Tarefa se torna inútil, porque muitas vezes quando finalmente o leitor tem acesso à crítica, a exposição já tem saído de cartaz. Diferentemente da crítica literária. Quando examino a obra do poeta paulista Roberto Piva, por mais marginal que ele tenha sido um dia, rabiscando poemas em guardanapos de papel nos bares infectos da boêmia de São Paulo, hoje se pode encontrar a obra do poeta transgressor quase toda editada ou relançada nas livrarias pela Editora Globo. Já em se tratando de crítica de artes-plásticas temos uma série de problemas. O primeiro deles: se a crítica não vier acompanhada de ilustrações, tudo ficará muito no plano da abstração. Além disso, no caso da arte contemporânea não basta apenas a crítica vir acompanhada de suas respectivas reproduções fotográficas. Já que na contemporaneidade as condições ambientais, ou até a ausência delas, faz parte do gesto artístico. Assim, não basta reproduzir os pôsteres fotográficos que ficaram fixados nas paredes de uma parte do terminal (Não informo o nome da artista porque não havia folder nem o monitor tinha o catálogo com o nome da mesma), pois quem sabe se o fato do deslocamento dos ônibus no interior do terminal, proporcionando momentos em que os pôsteres eram vistos e outros em que eram tapados pelos ônibus, não faz parte da intenção da artista? Ou seja, não seria aí também os motoristas de ônibus uma espécie de co-autores das obras? Seria difícil reproduzir isso em fotos. Outro problema de se fazer crítica de artes-plásticas em comparação com a crítica literária: é que na crítica literária conto com o sossego de um escritório, de um quarto e de um livro que tiro ou recoloco na estante conforme a conveniência. Já a crítica de artes-plásticas é extremamente desconfortável. Uma vez para cobrir uma exposição do Centro Cultural Banco do Nordeste, tive de ficar agachado ou sentado no chão enquanto preenchia meu caderno de anotações, pois as obras que estava analisando foram dispostas numa vitrine rente ao chão. Nessa exposição em particular, no 1º dia em que fui vê-la, fui num horário próximo do rush e o terminal estava ficando muito cheio, esfumaçado e barulhento. No 2º dia em que fui num horário mais cedo, uma das vídeos-instalações apresentou problemas técnicos. E o vídeo não foi exibido e o monitor de TV estava desligado. Tudo isso são imprevistos que o crítico literário, no conforto de sua casa e tomando seu café, nunca terá. A 1ª obra analisada é do cearense Luiz Sales, cujo título é 8. É uma instalação usando a técnica da fotografia. Num suporte de 200x400 cm, vemos duas fotografias justapostas. Numa delas é um clique fotográfico sobre uma cena banal no centro da cidade de Fortaleza: pessoas atravessando uma rua em frente ao Edifício Sulamérica. Tudo isso seria banal aqui, se o fotógrafo por um processo digital (tipo Photoshop) não tivesse tirado as cabeças e rostos dessas pessoas atravessando a rua. Causando um visível efeito de estranhamento. E na foto ao lado há um esboço de rosto feito em negro sobre fundo branco. Quando vi os homens sem cabeça e sem rosto atravessando a rua, lembrei do conceito sociológico do sujeito sem rosto, sem identidade da pós-modernidade. E o esboço de rosto ao lado dessa foto, sugere um rosto sem traços identitários definidos, pois o rosto não exibe marcas de classe social, poder aquisitivo, faixa-etária, etnia e até gênero, o que nos sugere o conceito das identidades fluidas e líquidas de Zigmunt Bauman. A 2ª obra analisada é Sem Título do cearense Caio Danieli. A técnica utilizada é a fotografia e impressão digital sobre tecido. O monitor da exposição me informou algo curioso: a fotografia foi tirada numa câmera tipo pinhole, que são aquelas câmeras artesanais muito rudimentares, utilizadas por oficineiros para dar aulas de fotografia para alunos carentes que não tem dinheiro para comprar uma câmera profissional. O efeito plástico dessa foto foi muito bom. Devido à baixa qualidade e a baixa resolução, a imagem ficou com um efeito poroso, granulado. E o que se vê é uma paisagem marinha bem comum aos fortalezenses. Nela aparece um pedaço da ponte dos Ingleses, também conhecida por Ponte Metálica. Justamente aquele pedaço em que o acesso do público é proibido; a ferrugem, a maresia, buracos na argamassa deixaram a edificação em ruínas. Há algo de metáfora aqui. Trazer parte do oceano atlântico para dentro da região mais afastada do litoral de Fortaleza. Seria uma brincadeira do artista com aquela profecia de que o mar em 2012 vai atingir até a Serra do Maranguape, devido a um suposto cataclismo geológico, previsto por um pai-de-santo e que já faz parte do anedotário da cidade? Pode também ser uma alusão a questão dos deslocamentos e das desterritorializações proporcionadas pela tecnologia. Pois os usuários do Terminal do Siqueira, que estão vendo a réplica daquela paisagem, poderão vê-la pessoalmente, pois do terminal há itinerários de ônibus que levam para Praia de Iracema. Isso não seria possível antes do advento da civilização do automóvel, dos ônibus coletivos e da rodoviarização forçada da paisagem brasileira, depois do Governo Juscelino Kubitschek, totalmente submisso à indústria automobilística. Enquanto na Europa as pessoas vão para o trabalho ou para o lazer através do transporte ferroviário, que polui bem menos e mata bem menos também. A 3ª obra é do paranaense Charles Klitze: Revestimento/Reinvestimento em desenho de gênero II. Intervenção feita através da impressão de cartazes off-set. Na obra vários cartazes com o mesmo motivo foram colados. Neles há um pugilista desferindo socos. Pode estar fazendo uma crítica à violência urbana que se multiplicou no cenário caótico das cidades. Sinalizando que vivemos numa era tensionada de conflitos. Pode ser também uma paródia com o modismo do Muay-Thay, praticado tanto por gente séria, como por doidinhos que querem sair por aí dando porradas em homossexuais e empregadas domésticas, que esperam a condução na parada de ônibus. Falo em paródia, porque o traço utilizado nos remete ao universo das histórias em quadrinhos. A 4ª obra analisada é a da cearense Cláudia Sampaio, que usou técnicas diversas como pintura direta na parede com pincel atômico, lápis, guache, colagens de recortes, detalhes fotográficos e objetos do cotidiano colados na parede. A obra possui um texto verbal que sugere uma leitura, mas devido à disposição caótica intencional, o espectador fica sem a indicação de um percurso de leitura específico. Pois a cada momento que se tenta ler, a frase é interrompida por um desenho, ou por outra frase superposta em outra cor, a sugerir o estado emocional perturbado da artista. A monitora explicou que a artista sofreu recentemente a experiência do luto com um parente e que parece ter havido violência sexual nesse homicídio. A obra mostra elementos icônicos que sugerem cortes, rupturas, perdas, sobreposições. Há beleza nesse caos, mas também há dor. A 5ª obra analisada é dos cearenses do Themis Memória: Uni-forme. É uma instalação em que há um relógio de ponto antigo, TV e DVD. No primeiro dia em que fui ver a obra, o vídeo funcionava. O que é a obra? Aparentemente um relógio de ponto, só que no lugar do relógio, foi colocado um monitor de TV que fica exibindo uma video-arte. No 1º dia que fui consegui ver a vídeo-arte. E no 2º dia que fui com o caderno de anotações, o vídeo estava desligado por problemas técnicos. Pelo que entendi Themis Memória não é uma pessoa, mas um grupo de artistas. O vídeo foi editado por Frederico Benevides e contou com a performance do seguinte elenco: David da Paz, Taya Lópis, Balbucio. Contou ainda com a parceria de João Paulo Ribeiro e Luiz Pratti. A trilha-sonora é assinada por Narcílio Grud. As fotografias presentes no vídeo são de João Wilke, Reginaldo Freitas e Haroldo Sabóia. Vou descrever o que acontece com o espectador nessa obra. Ele chega e vê um relógio de ponto antigo analógico e um pequeno fichário antigo cheio de cartões de ponto usados. No cartão está escrito: - Bata Ponto. O verbo no imperativo sugere a atmosfera autoritária do mundo do trabalho. Como o relógio de ponto é antigo, talvez a obra queira sugerir que estamos num mundo marcado pelo desemprego e que assim como o relógio de ponto, o trabalho é uma relíquia do passado. Então se não temos mais o pelourinho moderno que é o relógio de ponto para nos atanazar, então seria o momento de comemorar a liberdade de um mundo sem trabalho e marcado pelo ócio? (Bob Black em Abolição do Trabalho). Errado. Não é o que sugere o tom e a trilha-sonora da vídeo-arte. Nela pessoas se movimentam em cima de um palco repetindo movimentos mecânicos, como se batessem ponto, com uma iluminação sombria a sugerir o ambiente insalubre das fábricas, que um dia o homem foi condenado a suportar e que hoje foi expulso delas pelas inovações tecnológicas, pela automação do trabalho e por certos modelos de gestão da cadeia produtiva, como o toyotismo, que provocaram o enxugamento do quadro de pessoal. A vídeo-arte tem interferências de fotografias e recortes de anúncios publicitários, sugerindo que esse homem pós-moderno está angustiado não por ter perdido o trabalho ou por nunca ter conseguido se inserir no mercado de trabalho, mas por não ter como consumir as mercadorias que lhe são oferecidas diariamente pela publicidade e que ele desesperado não tem poder aquisitivo para comprá-las. Outras reflexões também são sugeridas aqui. Mesmo que o homem pós-moderno esteja desempregado em grandes contingentes urbanos ou rurais, será que sua psique está desempregada? Ou para ser mais claro, depois dos 200 anos da Revolução Industrial, que trouxe outro uso do tempo e do espaço terrestres, que trouxe outros ritmos e pulsações... pois o homem que passou 200 anos cumprindo horários, prazos, obedecendo ordens e produzindo mercadorias nos ritmos frenéticos ditados pelas leis implacáveis da economia de mercado, estaria esse homem preparado para esse repentino e compulsório excesso de tempo livre, provocado pelo desemprego estrutural? Vamos esmiuçar mais este raciocínio. Há 200 anos que o homem vinha sendo usado como engrenagem de uma grande máquina de produção. Sendo controlado pela produção, ao invés de controlá-la como tentaram fazer na revolução de caráter anarquista na Espanha de 1936 ou como sugere a crítica do fetichismo da mercadoria da obra do filósofo alemão Karl Marx. O homem se via pautado pelos ritmos cadenciados e militarizados do trabalho, ora no taylorismo ora no fordismo. De uma certa forma, a instrumentalização do ser humano provocada pelas necessidades do produtivismo capitalista marcou também a subjetividade do ser humano. Tanto que o ser humano trouxe certos hábitos da fábrica ou do escritório para sua vida pessoal. Hoje, por exemplo, quando alguém termina um namoro com outro pessoa, há até a expressão: AH! Eu dei as contas de fulano ontem na festa O conceito cínico networking, que consiste na necessidade das pessoas atualmente serem sempre simpáticas, ficarem mostrando os dentes o tempo todo e evitarem certos atritos ou conversas mais profundas com os colegas e amigos, no intuito de que esse colega ou amigo não pode ser descartado, porque pode estar nele a dica ou a indicação do próximo emprego ou do próximo bico ou trabalho temporário, que levará a comprar aquela TV de 29 polegadas de Plasma, que está cientificamente comprovada que ninguém pode passar sem ela. Assim, o networking difundido por conceitos como DATA-MARKETING, veiculados por revistas idiotas como a Você S.A., nada mais é do que Roberto Kurz chamou sarcasticamente de relações de freguesia. Então, o que seriam as amizades hoje em dia? Oportunidades de negócio. Assim, insistimos, o homem pode até estar desempregado, mas sua psique continua batendo cartões de ponto em todos os lugares. Para terminar a análise da obra do relógio de ponto, vale ainda destacar que de cada lado do relógio de ponto há uma gravura de uma mulher nua pintada em branco sobre fundo azul. Eletrodos de uma máquina foram instalados em sua vagina e em seu cérebro, constituindo uma sinistra simbiose homem-máquina, sugerida por certos modelos de gestão de trabalho como o toyotismo, que liquidou totalmente a vida familiar dos trabalhadores, que ainda permanecem empregados - falo aqui da nefasta prática da folga cinco por um. A mulher na gravura parece emitir um espasmo de dor e os traços lembram algo da ficção-científica Blade Runner ou do artista Moebius, nesse pequeno quadro sádico em que se tornou o capitalismo transnacional vitorioso com as bênçãos das esquerdas e direitas administradoras. Na 6ª obra analisada, a paulista Heloísa Etelvina: Filatelista, feita com gravura - 1,92x3, 10 cm, selos fictícios, tipografias e carimbos compõe um painel que de longe lembraria algo na confluência entre o rigor do construtivismo geométrico e o abstracionismo. De perto, o espectador ao se aproximar percebe que há selos que tem letras, sílabas, que remeteriam a uma língua que tivesse fonética, morfologia e até sintaxe, mas que não tem semântica. Posto que as letras e sílabas não formem frases nem textos. Ou formam palavras de uma língua inexistente. Talvez Etelvina queira referir-se a uma época, em que o bombardeio de informações diárias proporcionado pelos meios de comunicação de massa, mais tumultuam a mente do receptor, do que informam. Ou então, seria uma alusão a partir do significante do selo fictício de que as comunicações atualmente estão mais cheias de ruído, do que de sentido. Na 7ª obra Antonio Rocha: Seres Naturais (o monitor não soube informar a naturalidade do artista) feita de gravuras com tinta serigráfica num suporte de tecido. As cores utilizadas foram jogadas em jorros furiosos e explosivos sobre a tela num fundo branco. Os matizes foram o preto, o branco, o cinza e o magenta. E o efeito plástico produzido nos remete a um expressionismo abstrato que resolve cantar o disforme, o grotesco, o feio e o sujo realçado pelo excesso de preto, a simular talvez a fuligem presente em terminais de ônibus. Na 8ª obra da cearense Ivanize, a artista usou a técnica de lambe-lambe, pintura sobre papel. Foram coladas nas paredes do terminal. Há uma adolescente colegial. Há uma concha gigante de que saem pernas femininas e há uma mulher com mala querendo sair, migrar para algum lugar, mas dos seus pés brotam raízes que a impedem de sair. Que percurso de leituras podemos fazer desses significantes? A associação com o universo feminino é automática. A mulher-menina adolescente na escola, que deve ir à escola para aprender a ser uma mãe ou trabalhadora eficiente e submissa. A mulher escondida numa concha gigante que poderia ser o útero, mas também pode ser o ostracismo imposto à mulher durante muitos anos e uma mulher que finalmente resolve deixar a casa do pai, do marido, do companheiro que a oprime, mas que ao mesmo tempo, já se enraizou no que é familiar, ainda que ruim e teme a insegurança e a imprevisibilidade do desconhecido. E por último a obra do cearense Gentil Barreira: Espelho Meu II. Fotografia - 200x 90, impressão espelhada adesivada sobre PVC. Em duas fotos um homem e uma mulher de corpos inteiros vestidos e mal iluminados. A iluminação é suficiente apenas para mostrar os contornos do corpo e certas partes do colorido das roupas. A impressão que se tem é de que estão num provador de roupas dessas lojas de departamento. Os rostos de ambos estão escurecidos. A pergunta que a obra de Gentil Barreira nos faz é: qual o contorno do homem e da mulher contemporâneos? E se o refletor se acendesse sobre seus rostos, o que veríamos? Que tipo de homem e que tipo de mulher a pós-modernidade produziu em meio ao patriarcado judaico-cristão agonizante, como se depreende da obra de João Silvério Trevisan (Seis balas num buraco só: A Crise do masculino - Ed. Record), da feminista alemã Roswita Scholz e as seduções da sociedade de consumo, da indústria de comésticos como se depreende da obra de Gilles Lipovetsky? Termino aqui minha contribuição crítica. Não quiz com ela encerrar um debate, mas provocar seu início.

FERNANDO PESSOA E OCULTISMOS

Fernando Pessoa crê na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desse mundo, em graus diversos de espiritualidade, utilizando-se até chegar a um ente supremo, que provavelmente criou este mundo. Ele achava que podia haver outros entes supremos que houvessem criados outros universos coexistentes com o nosso. A Maçonaria evita a expressão Deus, dadas as suas implicações teológicas e populares, preferindo dizer: grande arquiteto do universo, que deixa em branco se ele é Criador, ou simples governador do mundo. Não crê na comunicação direta com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos comunicar-se com seres cada vez mais altos. Os três caminhos para o oculto são: o caminho mágico (espiritismo e bruxaria, extremamente perigosos); o caminho místico (não tem perigos mas é incerto e lento) e o caminho alquímico (o mais difícil e o mais perfeito, que envolve transmutação da própria personalidade). Fernando Pessoa, poeta introspectivo, vivia de traduções da língua inglesa para o comércio e não pertencia a nenhuma ordem iniciática.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

GLEUDSON PASSOS CARDOSO E A PADARIA ESPIRITUAL

Este texto é uma resenha do livro "Padaria Espiritual: Biscoito fino e travoso" de autoria do historiador Gleudson Passos Cardoso, faz parte da Coleção Outras Histórias editada pelo Museu do Ceará e Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará. Gleudson Passos Cardoso, nascido em Fortaleza, graduado em História pela UFC e mestre em História Social pela PUC-SP, é professor de História da Unifor e do Projeto Magister/UFC. Membro atuante da Sociedade de Belas Letras & Artes Academia da Incerteza. É poeta, tendo se especializado na arte do soneto. Autor do livro "Fraya Zamargad: Sonetos de Amor e Melancolia". O livro "Padaria Espiritual: Biscoito fino e travoso" é uma espécie de resumo de sua dissertação de mestrado cujo título é "As Repúblicas das Letras Cearenses: Literatura, Imprensa e Política (1873-1904)". A obra traça um panorama do contexto peculiar da Fortaleza do Séc.XIX que gerou a singular confraria de escritores da Padaria Espiritual. A Padaria Espiritual foi um grupo eclético em atuações e tendências literárias. Liderada pelo escritor Antônio Sales, tinha como principal propósito alfinetar a burguesia ignara. Gleudson Passos revela no primeiro capítulo a constituição dos grêmios literários que antecederam os escritores do Jornal "O Pão". A Academia Francesa, segundo o autor, em muito difere do grupo de Antônio Sales. Enquanto Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Júnior e outros surgiram para combater a Igreja Católica, nas páginas do órgão maçônico "Fraternidade", como estandartes da sociedade industrial-civilizatória, entendido como culto ao progresso, a tecnologia e a ciência; o grupo dos padeiros, por sua vez, revestia-se de certo saudosismo em relação a uma cidade que perdia seus encantos brejeiros e assumia terríveis ares de metrópole. O autor informa que enquanto outras agremiações como o Centro Literário e a Academia Cearense procuravam disseminar a ideologia do progresso, seja relacionada ao regime republicano ou ao conhecimento científico-tecnológico, a Padaria Espiritual optou por interpretar a realidade nacional de acordo com a realidade popular que compunha a nação brasileira. Isso se traduz numa certa aversão aos estrangeirismos, tão comuns à moda e ao "mundanismo" que os produtos fabricados nos países industrializados trouxeram aos centros comerciais e áreas de influência mais recônditas. Desse modo, o historiador identifica alguns traços de teor nacionalista. Entretanto, a Padaria Espiritual não era um grupo homogêneo. Gleudson Passos comunica que as posturas variavam bastante. Na paleta dos "forneiros" podiam-se perceber desde as cores alegres da filosofia do progresso com Antônio Sales e Álvaro Martins até os tons escuros do pessimismo satânico e a descrença na civilização industrial com Lívio Barreto, Lopes Filho e Cabral de Alencar. Com base nisso, o historiador pinça trechos de crônicas em Antônio Sales e o republicano exaltado Álvaro Martins revelam a crença de que a normalização dos espaços p[públicos e a correção de comportamentos transgressores à ordem urbana contribuiriam para o progresso, o bem-estar social e a moralidade. Por outro lado, membros do grupo como Adolfo Caminha identificava nos regeneradores da ordem sócio-urbana (médicos, higienistas, urbanistas, engenheiros), nas classes urbanas emergentes e nas facções políticas oligárquicas, os agentes de imposição de uma violenta disciplina urbana, a reproduzir o consumismo selvagem, bem como concentrar poder político com mandonismo, violência física e atos ilícitos, nepóticos e clientelistas. No segundo capítulo, Gleudson Passos compõe o painel da formação da Padaria Espiritual. Segundo o autor o grupo era formado por rapazes oriundos dos setores médios e baixos da cidade e do interior. Eram, portanto, funcionários da alfândega, caixeiros, escritores menores, sem filiação com as facções político-oligárquicas e buscavam ascensão pública e social. No terceiro capítulo o historiador recupera a importância do fundador do grupo, Antônio Sales. Gleudson Passos mostra em que medida a atuação publicitária do autor de "Trovas do Norte" projetou o grupo não só no Ceará, como nos grandes centros. Antônio Sales enviava o "Programa de Instalação" para vários escritores do eixo Rio - São Paulo e pedia colaboradores para o Jornal "O Pão" em todo o país. Com esta estratégia a Padaria Espiritual passou a ser referência de literatura feita no Ceará. No quarto capítulo, Gleudson Passos mergulha nos meandros da chamada "literatura menor" do Ceará, isto é, feita por apreciadores da estética simbolista. Assim, os padeiros "nephelibatas" beberam nas fontes de Baudelaire, Verlaine, Antero de Quental e Antônio Nobre. O autor entende que o trabalho de Lopes Filho, Lívio Barreto e Cabral de Alencar está calcado no estilo dionisíaco, herdeiro do barroco e, sobretudo do romantismo, em que deram-se por rebelar contra as estratégias de controle simbólico, como a crença ortodoxa na ciência, no progresso técnico-industrial e na democracia liberal. No último e breve capítulo, o autor procura estabelecer uma relação nem sempre amigável entre os escritores e a imprensa local. Padaria Espiritual: Biscoito fino e travoso é uma obra curta (93 páginas) e bem urdida, feita com apuro e lucidez crítica. O texto de Gleudson Passos é saboroso e fluido. O autor não faz crítica literária e nem é esse o objetivo de um historiador, mas procura investigar em que medida o literário pode ser uma porta de acesso a um tempo esquecido.

AS IMPLICAÇÕES DO DUPLO-MARX

Este texto é mais um brainstorming sobre a questão, do que propriamente um ensaio científico seguindo todas as regras do cânon metodológico. Parte da perplexidade perante o contato com a afirmação da existência de um ‘duplo Marx’, anunciada aos quatro ventos por um imenso tecido conceptual auto-proclamado como Teoria Crítica Radical. Busca ver as implicações deste Marx duplicado e procura - a partir do conceito da polifonia elaborado pelo lingüista russo Mikhail Bahktin - colocar o problema em outros termos. O DUPLO MARX A tese do ‘duplo Marx’ é defendida por um organismo internacional denominado Movimento pela Teoria Crítica Radical ou Internacional Emancipacionista. Tal instituição é composta por uma gama heterogênea de pensadores e atores do que vem sendo chamada de esquerda não-oficial. Quando se diz heterogênea, é porque parece não haver uma homogeneidade conceptual entre seus membros. E isto fica claro, às vezes, num único documento lançado pelo grupo. Por exemplo, na brochura O Eterno Sexo Frágil? de autoria de Robert Kurz e Roswitha Scholz, publicada no Ceará pela União das Mulheres Cearenses, é patente a discordância entre esposo e companheira (os autores são casados), em que a feminista alemã dá alfinetadas no grupo/revista liderado pelo marido, a saber: o (a) controvertido(a) movimento/revista Krisis. E isto é ruim? Pensamos que não, pois olhando retrospectivamente, percebemos que a falta de homogeneidade é que produziu as coisas mais interessantes do pensamento humano: desde a experiência fundadora da Padaria Espiritual no Ceará do século XIX até a Teoria Crítica de Frankfurt. Quem são os outros atores deste Movimento Pela Teoria Crítica Radical? A resposta conduz a idiossincrasia heterogênea da origem de seus membros. Entre eles citaríamos o ensaísta Jorge Paiva, brasileiro maoísta que lia Guy Debord em 68; Anselm Japp, um ensaísta alemão que mora na Itália e escreve em italiano; Enrique Dussel, professor universitário mexicano; Ruy Fausto, filósofo, professor da USP; Moishe Postone, professor da Universidade de Chicago; Ernst Lohoff, co-editor da Revista Krisis; entre outros. Segundo Jorge Paiva, o movimento também se espalha pela Áustria, Portugal, Espanha e África do Sul. O que permeia estes teóricos de origens tão díspares é o conceito capital do ‘duplo Marx’, categoria basilar geradora de outras categorias. A Lingüística diz que toda palavra ou signo ativam esquemas cognitivos prévios. Esmiuçando no Dicionário, o termo ‘duplo’ quer dizer dobrado, duplicado; que contêm duas vezes a mesma quantidade. O adjetivo ‘duplicado’ nos remete a outro adjetivo, ‘dúplice’ e somos surpreendidos por uma definição dicionarizada que registra um aspecto pejorativo da coisa, pois dúplice é o que é duplicado, duplo, mas é também o que tem fingimento ou dobrez. Assim, seríamos levados a existência de dois Marx: um verdadeiro e outro falso. Aqui acabamos entrando no perigoso terreno do juízo de valor. Pois quem teria capacidade de julgar e apontar o Marx verdadeiro e o Marx falso construídos pelo movimento operário? E para piorar as coisas, lembramos daquele episódio em que o próprio Marx disse categoricamente: - Não sou marxista. O que significa o duplo Marx na visão da Internacional Emancipacionista? Significa a existência de dois Marx num mesmo pensador. O Marx exotérico da teoria da mais-valia e, por conseguinte, da teoria da exploração; e o Marx esotérico da teoria do valor e respectivamente da teoria da alienação. E o processo se complica, porque segundo eles não se trata de uma divisão cronológica, como por exemplo alguns teóricos insistem na existência de um Jovem Marx e um Marx maduro. O que pareceria natural e já aconteceu em outros setores: um Lacan freudiano (do início da carreira) e um Lacan lacaniano (da maturidade). O problema não é esse. É outro. Os teóricos da Crítica Radical afirmam que esse ‘duplo Marx’ coexiste numa mesma época e numa mesma cabeça. Desse modo, o 1º volume do “Capital”, dedicado à Mercadoria, nega os volumes restantes. Aliás, eles informam, baseados provavelmente em Rosdolsky e Mézáros, que a introdução do “Capital” foi escrita depois da obra “pronta”. Assim, flagramos um processo de formatação teórica “sui generis”: um pensador que começa escrevendo o final de uma obra, para depois elaborar seu início. Uma obra muito discutida e citada pelos emancipacionistas que revelaria claramente a duplicidade de Marx é o livro “Grundrisse”. Outro fenômeno “sui generis” na trajetória intelectual de Karl Marx. Livro denso e complexo, lançado postumamente em edições precárias e reduzidas (pouco mais de 300 exemplares), o “Grundrisse” só vai aparecer em traduções francesas, espanholas e inglesas na década de 70 do século XX. E, diga-se de passagem, até pouco tempo atrás a obra não contava com uma tradução portuguesa, o que revela sintomaticamente o descaso da esquerda brasileira pelo seu conteúdo tão controvertido. Nesta altura dos acontecimentos, quando somos apresentados a um Marx duplicado ou dobradiço, vem automaticamente a associação com a esquizofrenia. Segundo João-Francisco Duarte Júnior em “O que é Realidade” – 8ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1991: a esquizofrenia seria a dificuldade do esquizofrênico em erigir para si mesmo uma identidade una e coerente, fragmentando-se numa multiplicidade de “eus”. Observando o alcance da Teoria de Marx, poderíamos detectar a existência de um Marx filósofo, um Marx economista, um Marx político, entre outros, num perpétuo rodízio intelectual. Desse modo, a categoria ‘duplo Marx’ mostra-se inadequada para captar a complexidade da obra de Karl Marx. MARX: ESQUIZOFRÊNICO OU POLIFÔNICO? A teoria da Polifonia elaborada pelo lingüista russo Mikhail Bahktin (não por acaso, um marxista) é a que parece dar melhor conta da questão. Segundo o lingüista russo a polifonia se dá através do processo da intertextualidade. Ou seja, cada texto é composto da soma de outros textos anteriores. Cada texto recupera as vozes de um texto anterior, seja confirmando ou negando-as. Desse modo, Karl Marx (aqui um metonímia) dialoga com Proudhon, Hegel, Smith, Ricardo, Aristóteles. Assim, Karl Marx seria uma espécie de palimpsesto onde estariam sobrepostas as vozes e marcas de pensadores anteriores e contemporâneos de Marx. A maior prova deste argumento seria a obra “Miséria da Filosofia” que dialoga com “Filosofia da Miséria” de Proudhon. Quando dizemos diálogo não se trata de uma alegre conversa de compadres, pois o diálogo pode ocorrer também de forma tensionada. Chegamos assim, através da teoria da polifonia, a uma discordância da idéia de um duplo Marx. Pois examinando a complexidade da obra do pensador alemão, chegaríamos à conclusão não de um duplo, mas de um quádruplo ou óctuplo Marx, ou seja, existe Marx ao gosto do freguês, ao gosto do intérprete. Ou será que o Marx do PC do B é o mesmo do PCR ou o do PT ou o da LBI? Desse modo, propomos não um duplo Marx, perdido entre os pilares da ponte que separa O Capital do Grundrisse, mas um Marx polifônico que traz em si uma babel de vozes e referências da experiência humana.

BRASILIDADE NO ROMANCE O CORTIÇO DE ALUÍZIO DE AZEVEDO

O romance O Cortiço é o livro mais representativo da obra de Aluísio de Azevedo e do realismo-naturalismo brasileiro. Quem deseja entender a identidade nacional, o Brasil atual, não pode passar sem a leitura desta obra. Diz-se que o Naturalismo só lida com personagens planos, isto é, sem sujeitos, agentes , somente objetos, pacientes. Aluísio de Azevedo, embora seja um naturalista confesso ( a zoomorfização de personagens, o determinismo ambiental, o cientificismo das causas e efeitos não deixam mentir), constrói personagens redondos que apresentam uma mobilidade moral e/ou socio-econômica. Desse modo, João Romão, o dono do cortiço, começa como simples empregado de um vendeiro e termina como proprietário burguês; em compensação para ascender socialmente ele se escora no trabalho da sua amante Bertoleza, a escrava fugida. Até Bertoleza, ingênua, submissa, dedicada, trabalhadora e analfabeta (fato pelo qual João Romão se beneficia) se torna desconfiada e amarga quando descobre que João Romão pretende enxotá-la (depois de velha, fedorenta) para se casar com uma moça rica. O autor se utiliza de um expediente interessante: para dar brilho a uma personagem, outra terá que ser ofuscada. Outras personagens apresentam mobilidade, contrariando os preceitos naturalistas. O português Jerônimo, trabalhador bovino (forte e manso), sério, austero, nostálgico e melancólico (gosta de tocar fados) será um vagabundo extrovertido (amante do ritmo quente do lundu) ao se amigar com a fogosa mulata Rita Baiana. Por sua vez, a sua esposa Piedade, séria e trabalhadeira, tornar-se-a alcoólatra, frívola e amante das farras após a separação. Pombinha, a menina-anjo, a queridinha escolarizada do cortiço ( que escreve cartas para os analfabetos) será uma habilidosa prostituta de luxo. Diz-se, etnocentricamente, que os europeus são os civilizados e os habitantes dos trópicos, seres bestiais. No entanto, o retrato que Aluísio de Azevedo faz do estrangeiro não é nada generoso. Piedade, a portuguesa mulher do também português Jerônimo, é trocada pela asseada mulata Rita Baiana, por não estar habituada aos banhos diários (por causa do enorme calor do Brasil) e viver, como diz o marido, com um cheiro azedo e mofado. O comerciante português João Romão, além de explorar a amante Bertoleza, deixa de pagar todas as vezes que pode, nunca deixando de receber, enganando os fregueses, desdobrando cachaça com água, roubando nos pesos e nas medidas, o que garante o seu enriquecimento ilícito. O autor não poupa também os italianos – um tipo de imigrante que dará muitas dores de cabeça aos fazendeiros brasileiros acostumados com a mao de obra negra e escrava – conhecidos no cortiço pelas cascas de melancia e laranjas entulhados na frente de seus cômodos. Revelando, surpreendentemente, que são os brasileiros os cultores da higiene. O Cortiço é, entre o Ana em Veneza de João Silvério Trevisan e o ensaio O Povo Brasileiro de Darci Ribeiro, um guia para entender a singularidade da brasilidade.

LUZIA-HOMEM: ROMANCE LÉSBICO?

O conceito gênero tornou-se muito discutido depois da 2ª Guerra Mundial – quando as mulheres, na ausência de seus maridos e pais, tiveram de entrar maciçamente no mercado de trabalho- e depois da Revolução Sexual dos anos 60 – impulsionada pela invenção da pílula anticoncepcional. O gênero aponta para a questão dos papéis sexuais que variam de uma cultura para outra (espacialmente) e de uma época para outra (temporalmente). Em Luzia-homem de Domingos Olímpio, a trama se desenvolve no Ceará feudal, agrário e oligárquico do século passado, lidando com latifundiários, seca, fome, retirantes, abuso de autoridade (por parte de policiais) e até a presença das frentes de serviço ( comprovando a atualidade da obra). Apesar dos preconceitos e da divisão rígida dos papéis sexuais da época, a necessidade faz com que o pai de Luzia a eduque como homem, i.é., entregando-lhe responsabilidades masculinas devido à ausência de filhos varões para cuidar da fazenda e do gado. Quando a fazenda se desfaz pela seca, o pai morre. Luzia se aventura pelo mundo, levando consigo sua mãe doente. Ela não se poupa de fazer atividades tidas como masculinas: trabalha na construção civil da frente de serviço (única fonte de renda possível devido à improdutividade agrícola com a seca) tentando garantir o seu sustento e o da mãe, numa atitude muito corajosa e audaciosa para a tônica patriarcalista da época. O que Luzia provoca nos homens e mulheres para ter ganho o apelido pejorativo de “luzia-homem”? Nos homens: provoca desejo por ser uma mulher muito bonita e de belos cabelos longos ( como o autor gosta de salientar), mas também frustração, despeito, já que ela nunca cede aos assédios sexuais destes, principalmente aos do soldado Crapiúna ( o arquétipo do abuso de autoridade). Nas mulheres: provoca inveja, comentários maliciosos e intrigas, pois ela, sempre preocupada com a sobrevivência, não interrompe suas atividades para fuxicos, fofocas e as frivolidades típicas das mulheres de pequenos povoados. Além disso, Luzia procura sempre se isolar das mulheres do vilarejo, nas horas vagas, dando margem para que as mulheres interpretem tal atitude como pedante. Luzia é uma fonte de assombros para os homens e mulheres ao mexer com as noções cristalizadas do que é masculino e feminino. Como uma mulher que carrega dois potes de barro, uma parede de tijolos na cabeça, salva e carrega nos braços um homem quase esmagado por um boi bravo, entre outros, quer ter o direito de amar um homem e ser sua esposa? Quem é essa que ousa sustentar-se, ter autonomia sem precisar de um homem? Eis o tensionamento da obra. A protagonista depois de adoecer é orientada pelo administrador da frente de serviço a trabalhar com as costureiras. Luzia detesta a idéia mas é obrigada a aceitá-la, pois está visivelmente debilitada. No ambiente das costureiras, o autor mais uma vez testará as noções pré – estabelecidas de gênero. A chefe, uma beata muito exigente, rosna para Luzia: “- Você parece que nunca viu costura, tamanha mulher, e não sabe por onde há de começar um par de ceroulas de homem”. Ou seja, para a professora uma mulher se reconhece no esmero e delicadeza das costuras que faz. Comparando os dois ambientes: o masculino (a frente de serviço) onde a solidariedade dos homens para com Luzia é maior e o feminino( o ateliê de costura) onde reina a maledicência e intolerância , pode-se concluir que as mulheres são mais machistas do que os homens. Com o tempo, mostrando o determinismo ambiental do realismo-naturalismo do autor, Luzia se adapta a nova realidade e acaba virando professora das meninas costureiras. Cabe discutir o problema de gênero colocado pela doença da mãe de Luzia. D.Zefinha sofre de asma e insiste em não tomar o remédio de botica (farmácia) prescrito pelo médico; prefere o lambedor indicado por uma rezadeira, D.Seridó, feito de componentes grotescos (um pinto vivo pisado no pilão), rezas e superstições. Nesta preferencia, flagra-se o choque entre o feudalismo da medicina popular, feminina e o capitalismo da medicina convencional, masculina. Alexandre menciona perante a intransigência da velha que o saber verdadeiro está com o médico. Tendo como referência o livro O que é feminismo (Col. Primeiros Passos), deduz-se que essa discórdia entre o saber intuitivo da rezadeira e o saber acadêmico do médico vem de longe – não se pode esquecer que a escolaridade era um privilégio dos homens, principalmente no Nordeste daquele tempo. Na Idade Média não foi só o clero católico, com medo de perder fiéis, que jogou videntes e rezadeiras, tidas como bruxas, na fogueira. A própria medicina convencional e masculina também cooperou com a Inquisição através de delações, pois queria eliminar a concorrência. Luzia e Terezinha, que exibem comportamentos supostamente inadequados, são bem tratadas, quando vão denunciar os abusos de autoridade e assédio sexual do soldado Crapiúna, por promotores e delegados e estes tomam as devidas providências ( a transferência de posto). A pergunta é: isso é verossímil? Se ainda hoje o movimento feminista alega que mulheres se queixam dos constrangimentos em delegacias comuns composta por homens, ao ponto de terem sido criadas as delegacias das mulheres nos anos 80 para atender a demanda.

O VELADO HOMOEROTISMO DE MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO

Há muita semelhança entre a estrofe de Escavação: " Numa ânsia de ter alguma coisa, / Divago por mim mesmo a procurar, / Desço-me todo, em vão, sem nada achar, / E minh' alma perdida não repousa", com o excerto do 1º parágrafo do Cap. I de A Confissão de Lúcio: "Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha vida e de todos igualmente desistido - sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande capital". Aqui notamos a personalidade vacilante, indecisa, o temperamento frouxo, sem vigor e o espírito dispersivo de Sá-Carneiro, como revelam os sememas de um de seus personagens: "não sei bem como", "achei-me", pois se ele próprio não sabe como foi parar em Paris, quem é que sabe? Um homem incapaz de assumir-se adulto, que vive da mesada do pai e que prefere desperdiçar suas energias físicas e mentais com a boêmia, do que com a faculdade de Direito; ou seja, Sá-Carneiro é um autêntico bon vivant, algo que terá um preço muito caro em sua vida. Outro momento de A Confissão: "Acho-me tranqüilo - sem desejos, sem esperanças. Não me preocupa o futuro. O meu passado, ao revê-lo, surge-me como o passado de um outro. Permaneci, mas já não me sou. E até à morte real, só me resta contemplar as horas e esgueirar-se em minha face...A morte real - apenas um sonho mais denso..." coincide com o que Sá-Carneiro diz no poema Dispersão: "Perdi-me dentro de mim, / porque eu era labirinto, / E hoje, quando me sinto, / é com saudades de mim." ou "Não sinto o espaço que encerro / Nem as linhas que projecto: / Se me olho a um espelho, erro - / Não me acho no que projecto" ou "Desceu-me n' alma o crepúsculo; / Eu fui alguém que passou. / Serei, mas já não me sou; / Não vivo, durmo o crepúsculo", entre outros versos, revelam a despersonalização, a inquietação ontológica e elementos paúlicos como a voluntária confusão do subjetivo e do objetivo pela associação de idéias desconexas e paradoxais; assim como, pelo vocabulário expressivo do tédio, do vazio da alma. PAÚLISMO O sentido mais predominante em A Confissão de Lúcio é a visão. O autor se vale de parágrafos imensos para descrever os trajes de suas personagens impregnadas de dandismo (como Gervásio Vilanova) ou para descrever os ambientes festivos de Paris. Em relação à presença do vestiário na diegese, é pertinente dizer que através dele o autor irá creditar não só a classe social e/ou o grau de instrução, mas, principalmente, a suposta preferência sexual da personagem ao nível da estereotipia, v.g. "Perturbava o seu aspecto físico, macerado e esguio, e seu corpo de linhas quebradas tinha estilizações inquietantes de feminilismo histérico e opiado..." ( grifo nosso em relação a Gervásio Vila-Nova). O talento de Sá-Carneiro pode ser notado na riqueza de pormenores inusitados quando descreve o traje de um americana amiga de Gervásio: "Um deslumbramento, o trajo da americana. Envolvia-a uma túnica de um tecido muito singular, impossível de descrever. Era como que uma estreita malha de fios metálicos - mas dos metais mais diversos - a fundirem-se numa cintilação esbraseada, onde todas as cores ora se enclavinhavam ululantes, ora se dimanavam, silvando tumultos astrais de reflexos. Todas as cores enlouqueciam na sua túnica." (grifo nosso pág.30). É de perceber-se a sinestesia do silvando tumultos astrais que nos remete à hiper-sensibilidade alucinada de Rimbaud, um legado simbolista que também se constitui num elemento paúlico. Também notamos elementos paúlicos no delírio sinestésico: "Inundava-o um perfume denso, arrepiante de êxtases, silvava-o uma brisa misteriosa, uma brisa cinzenta com laivos amarelos” (Grifo nosso pág.30), ou "essa luz, nós sentíamo-la mais do que víamos (...) Não impressionava a nossa vista, mas sim o nosso tato" (pág.32), ou "listas úmidas de sons se vaporizavam sutis..." (pág. 33), mostrando percepções muito próximos das relatadas por pacientes psicóticos ou por usuários de drogas alucinógenas como a mescalina, o LSD e o Ecstasy. HOMOEROTISMO A Confissão de Lúcio pode ser abordada por diversos aspectos, desde o alardeado, mas, voluntariamente velado homoerotismo, até ao caráter metatextual. Sobre o homoerotismo particular desta obra, percebe-se que ele é permeado por sentimentos de culpa e camadas de estereotipia com fidelidade ao contexto histórico da época. Ao homossexual é vedado o amor, pois ele só poderá amar outro ser do mesmo sexo se travestir-se de mulher. Bem diferente dos gays marombeiros de hoje, um homem não pode amar outro homem enquanto homem, daí a razão dele se desdobrar, alegoricamente, em uma mulher (Marta) e relacionar-se adulteramente com Lúcio - artifício metafórico/ simbólico do autor que acaba comunicando o conflito interior da sua identidade afetiva e sexual através de personagens alter-egos. E Sá-Carneiro tinha com o que se preocupar, pois o homossexualismo era crime na maioria do países europeus de seu tempo. Portanto, seu romance não pode mostrar um relacionamento homossexual transparente, receio do qual o nosso Adolfo Caminha d´ O Bom Crioulo não compartilhou, mas que em compensação lhe rendeu uma série de aborrecimentos. Como esquecer Oscar Wilde, que foi preso e teve bens confiscados por gostar de um rapaz filho de aristocratas? Nem Freud aliviaria a vida dos homossexuais, considerando-os, no mínimo, neuróticos. Mas há uma explicação: todos os clientes homossexuais do pai da psicanálise tinham medo de ser delatados ou presos, comprometendo-se, assim, todo equilíbrio psíquico e emocional. METATEXTUALIDADE A narrativa de Sá-Carneiro exibe um aspecto que interessa aos artistas, sobretudo aos escritores, trata-se do metatextual. No Cap. I, pág.22, Lúcio comenta o modismo do pedante Gervásio, que gosta de uma nova escola literária: “(...) o Selvagismo, cuja novidade reside na impressão de seus livros sobre diversos papéis e com tintas de várias cores, numa estrambótica disposição tipográfica. Os poetas e prosadores selvagens traduzem suas emoções unicamente em jogo silábico, por onomatopéias rasgadas, bizarras: criando novas palavras que coisa alguma significavam e cuja beleza ou virtude reside justamente em não significar coisa nenhuma. Esta escola era tão inconsistente que só publicou um livro.” O autor pode estar falando do Dadaísmo de Tzara. Lúcio assim define as escultura de Gervásio Vila-Nova: "As suas obras eram esculturas sem pé nem cabeça, pois ele só esculpia torsos contorcidos, enclavinhados, monstruosos, onde, porém, de quando em quando, por alguns detalhes, se adivinhava um cinzel admirável." Já esta passagem tanto pode referir-se ao Expressionismo quanto ao Futurismo de Giacomo Balla. Falando sobre as reuniões artísticas (espécie de saraus) na casa de Ricardo e Marta, Lúcio comenta, amargo e mordaz, a literatura de um amigo de Raul Vilar : "triste personagem tarado que hoje escreve novelas torpes desvendando as vidas íntimas dos seus companheiros, no intuito (justifica-se) de apresentar casos de psicologias estranhas e assim fazer uma arte perturbadora, intensa e original; no fundo apenas falsa e obscena." No Cap.II, pág.39, Gervásio fala para Lúcio - "Creia, meu querido amigo, você faz muito mal em colaborar nessas revistecas lá de baixo... em se apressar tanto a imprimir os seus volumes. O verdadeiro artista deve guardar quanto mais possível o seu inédito. Veja se eu já expus alguma vez...só compreendo que se publique um livro numa tiragem reduzida; e a 100 francos o exemplar, como fez o ...(e citava o nome do russo chefe dos "selvagens"). Ah! Eu abomino a publicidade!..." Esta passagem flagra a visão glamourizada do artista incompreendido, na torre de marfim, isolado dos demais, compartilhada por vários artistas de seu tempo e satiriza a atitude vanguardista de alguns de seus contemporâneos. CONSIDERAÇOES FINAIS A obra de Mario de Sa-Carneiro é uma oportunidade para quem se interessa por gay studies e sua relação com a literatura portuguesa modernista.

O ESPECTRO DO INFERNO: A OBRA DE WILLIAM BLAKE

O poeta e artista-plástico inglês William Blake (séc.XVIII) ao criar o perturbador poema Provérbios do Inferno, perverte toda a noção moralizante usual dos provérbios cristãos e projeta sua obra além do seu tempo, vindo a influenciar simbolistas e surrealistas que admiravam a ligação inusitada entre erotismo e misticismo do seus versos. Incompreendido no seu tempo, visto como excêntrico, visionário e louco (o que acabou se tornando, tendo várias internações), William Blake tinha uma visão muito particular da libido, segundo ele os prazeres sexuais era santos e através deles se atingia uma nova pureza e inocência. Essa forma de pensar, unindo o sensual e o espiritual, é muito próxima do Tantrismo hindu ? um tipo de Yoga que professa a conexão com Deus através da energia sexual (a kundalini). Não sabemos se o poeta teve acesso a esse tipo de informação, o que sabemos é que sua visão foi chocante para a Inglaterra puritanista e pré-vitoriana da sua época, ocasionando uma série de aborrecimentos e perseguições. O inferno exercia um enorme fascínio sobre o poeta, tanto que os seus últimos livros foram escritos imitando o estilo bíblico, constituindo uma espécie de bíblia negra que ele denominou Bible of Hell . O seu interesse pela temática o levaria a ilustrar a Divina Comédia de Dante. Dada essa rápida introdução, cabe agora analisar alguns versos do poema que intitula esse artigo. O poeta começa imperativo: “Conduz o teu carro e teu arado por sobre os ossos dos / mortos.” Incitando o leitor a esquecer os mortos, o passado, a tradição, as raízes e seguir confiante em busca de seus objetivos. Algo que, não acidentalmente, contempla o que supostamente Cristo teria dito caso tivesse existido: “Deixai aos mortos o cuidado de enterrar seus mortos? ou ?abandona pai, mãe, filhos e segui-me.” Com “A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria” e “A prudência é uma solteirona rica e feia / cortejada pela impotência”, o poeta condena toda forma de bom-senso. Em “Quem deseja mas não age gera pestilência”, antecipa o que Freud diria, dois séculos depois, sobre a natureza das doenças psicossomáticas. Professa o narcisismo e a auto-estima: “Aquele cujo rosto não se ilumina, jamais há de / ser uma estrela” Enquanto o Cristianismo condena a vaidade. Reprova a introspecção e a ociosidade: “A abelha atarefada não tem tempo para tristeza.” Portanto, “os alimentos sadios não são apanhados com / armadilhas ou redes.” Ridiculariza os fantasmas: “Um cadáver não vinga as injúrias.” “Os tigres da ira são melhores que os cavalos / da educação.” Blake era fascinado pelo Tigre, segundo ele, por ser o símbolo da tirania divina a qual o homem se submete; enquanto, o Cordeiro é o símbolo da bondade patriarcal de Deus. Aqui, um paradoxo que só a linguagem poética justifica, pois como um Deus pode ser tirano e bondoso ao mesmo tempo? Em “As prisões se constróem com as pedras da lei / Os bordéis com os tijolos da religião”, o poeta ataca a ambigüidade do clero e da justiça. Refuta a o sentimento de culpa: “A raposa condena a armadilha, não a si própria.” Algo misógino ou machista em “Que o homem use a pele do leão, a mulher / a lã da ovelha.” Prescreve a autenticidade: “Dize sempre o que pensa e o homem torpe / te evitará.” E condena a humildade : “A águia nunca perdeu tanto tempo / como quando resolveu aprender com a gralha.” Propõe o dinamismo : “Da água estagnada espera veneno” e conclui de forma cruel : “A raposa provê para si, mas Deus provê para o leão” mostrando que Deus tem preferência pelos fortes , subvertendo a velha crença de Deus preferir os fracos e humildes de coração que se deduz das contraditorias passagens do Antigo Testamento. O vigor estilístico blakeano inspirou Nietszche (no seu ódio ao cordeiro, o rebanho humano), Baudelaire (no seu decadentismo satanista), o futurista Marinetti (no seu violento anti-clericalismo e no tom provocativo de suas composições), em Strindberg, o poema em questão ganhou uma versão musicada pela banda de rock brasileira As Mercenárias na década de 80. Não sabemos dizer se misticos midiáticos como Aleister Crowley do Livro da Lei e Anton Szandor LaVey da Biblia Satanica tiveram acesso a obra do poeta ingles, mas que o thelemismo e o luciferianismo parecem inspirados nessa trilha aberta por William Blake, isso sem dúvida.

O CORPO E SUAS PULSÕES: A OBRA DA COREÓGRAFA SÍLVIA MOURA

"Não é possível prostituir a ideia de teatro, que deve ter uma ligação mágica, atroz com a realidade e o perigo" ANTONIN ARTAUD in O Teatro e seu Duplo Este artigo não segue o cânone da crítica de dança e comete vários pecados conta o mesmo.Irei debruçar-me sobre a obra da coreógrafa cearense Sílvia Moura. Este artigo é ruim, do ponto de vista da crítica de dança, porque não li nada da obra do teórico da dança Rudolf Laban . Também não tive acesso à historiografia da dança brasileira, que inclui autores como Jacques Corseuil, Antonio Jose Faro, Suzana Braga, Nicanor Miranda, Lineu Dias, Helena Katz e Roberto Pereira. O máximo que consegui até agora foi ler um artigo muito esclarecedor de Marcela Benvegnu, o qual discute a dança contemporânea. Evocar Marcela Benvegnu no artigo sobre Sílvia Moura é conveniente, porque a coreógrafa cearense tem um trabalho alinhado com o que há de mais forte na chamada dança contemporânea. Para Marcela Benvegnu a dança contemporânea se caracteriza pela estrutura não-linear, ou seja, um espetáculo como os desenvolvidos por Sílvia Moura com os alunos do SESC é estruturado, é um aglomerado de signos, de significantes e significados, ainda que numa sintaxe próxima do caos, ou assintática. Benvegnu ainda aponta a não-narratividade como outra característica da dança produzida por companhia como o grupo CORPO, a QUASAR companhia de dança, o BALLET CISNE NEGRO, entre outros. Assim, entenderemos que espetáculos como Vagarezas e Súbitos Chegares, baseados na obra da artista-plástica gaúcha Elida Tessler e da poetiza mineira Adélia Prado, não narram, não contam absolutamente nada. E outra característica típica da dança contemporânea: multiplicidade de significados, discursos, temáticas, processos e produtos nos leva a contemplar um dos trabalhos de Sílvia Moura realizado no palco do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, dentro do projeto Quinta com Dança de formação de platéia. Nele dois planos se sucediam no palco. Um elenco grande de bailarinos dançava todas as pulsões da grande metrópole e ao fundo um DATA-SHOW projetava na parede Sílvia Moura entrevistando os freqüentadores da Praça do Ferreira (que fica no Centro da capital do Ceará). O efeito produzido era o de simultaneísmo plástico. Muitas vezes o olhar não sabia pra onde se dirigir: se para o elenco de bailarinos ou se para o DATA-SHOW no fundo do palco. O que revela o simultaneísmo das grandes metrópoles pós-modernas do capitalismo transnacional, em que os habitantes são quase devorados pela poluição visual, sonora e pela avalanche de signos vomitada por fragmentos de outdoors, outbus, faixas de clubes de forró, letreiros, placas de trânsito, cartazes, pichações políticas e todo um frenetismo sígnico ad nauseam. Referência ao passado é outra característica levantada por Marcela Benvegnu, que podemos apontar nesse espetáculo de Sílvia Moura. O espetáculo começa com uma senhora idosa que entra no auditório do teatro e começa a perguntar à platéia se todos conhecem a história do cajueiro botador, que tinha na Praça do Ferreira. E logo começa o DATA-SHOW mostrando Sílvia Moura entrevistando os frequentadores da Praça do Ferreira sobre o cajueiro botador. Multiplicidade e interdisciplinaridade das artes seria outra característica da dança contemporânea presentes aqui.Nesse espetáculo há dança, há teatro, há cinema documental e referência ao circo mambembe com a maquiagem de Sílvia Moura. Comecei a conhecer a obra de Sílvia Moura ainda na década de 80, no ano de 1988, quando ela tinha a companhia EM CRISE e os habitantes do Planeta Terra tinham a ilusão de viver num suposto mundo Bi-polar, dividido no capitalismo de modelo americano e no capitalismo de estado do modelo soviétic0-bolchevique, também chamado de Guerra fria. A Companhia EM CRISE levou os princípios da dança contemporânea até as últimas consequências.Sílvia Moura e seu elenco de bailarinos montavam os espetáculos nos lugares mais inóspitos e improváveis: no Sindicato dos Comerciários interrompendo o forró dos trabalhadores que vinham do comércio na sexta-feira; no Sindicato dos Bancários dinamitando a tradicional separação espectador-artista; em cima do palanque na Praça José de Alencar sob vaias dos papudinhos que queriam ouvir música brega, enfim, qualquer lugar podia ser territorializado pela dança desterritorializada de Sílvia Moura. Outra marca da obra de Sílvia Moura é a atuação política.Ela já chegou a montar espetáculos para conseguir alimentos e material de higiene pessoal para um amigo preso.E agora sua última campanha é por uma amiga bailarina, que está doente e que ela quer conseguir um benefício do INSS para a amiga. Sílvia Moura tem atuado com e para presidiários e presidiárias, o que revela uma preocupação micro-política no dizer de Felix Guatarri. A micro-política do cotidiano de grupos marginalizados ou criminalizados. Ou a micro-física do poder na terminologia de Michel Foucault. Sílvia Moura também é habilidosa artesã e gosta de reutilizar os refugos jogados a esmo pela sociedade de consumo, que entulha as praças de Fortaleza e entope os esgotos provocando as enchentes nas áreas de risco. A obra de Sílvia Moura é forte, vigorosa, pesada, carregada, densa e escorpiana.Sílvia Moura não poupa os espectadores de entrarem no auditório e se depararem com um monte de velas pretas e vermelhas acesas ou com o forte cheiro de pólvora exalando dos corpos dos bailarinos.A associação com à Quimbanda, com a magia cinza e com a magia negra não é gratuita, pois Sílvia Moura é uma feiticeira, como todas as mulheres são feiticeiras. Num dos espetáculos para denunciar o industrialismo e o produtivismo capitalista, que tem levado à exaustão dos recursos naturais não-renováveis do planeta; Sílvia Moura coletou um monte de garrafas de vidro de bebida jogadas próximas dos bares e churrascarias da cidade de Fortaleza.No espetáculo a coreógrafa cearense destrói todas as garrafas e não poupa a plateia de levar no olho algum estilhaço de vidro quebrado. Com esta arte visceral, viril, provocadora, criativa e destrutiva, Sílvia Moura tem levado ou tentado levar as plateias a questionar o uso do espaço urbano, da temporalidade e do corpo.

domingo, 23 de setembro de 2012

NEGRITUDE E HOMOAFETIVIDADE NO ROMANCE O TRONO DA RAINHA JINGA DE ALBERTO MUSSA

NEGRITUDE E HOMOAFETIVIDADE NO ROMANCE O TRONO DA RAINHA JINGA DE ALBERTO MUSSA O propósito deste ensaio é esmiuçar a construção dos personagens negros no romance O Trono da Rainha Jinga do escritor carioca Alberto Mussa (Rio de Janeiro: Record, 2007.) Assim, o ensaio pretende analisar também o grau de pertencimento à cultura negra por parte de escravos ladinos, boçais, forros e o relacionamento com os chamados brancos. Até que ponto os brancos do romance estão certamente convictos dos valores judaico-cristãos católicos ibéricos ou de que forma esses brancos se misturam (ou se perdem) nos costumes dos pretos. Também analisaremos a homoafetividade de um dos personagens do romance. TENTANDO FALAR DO ENREDO... O romance O Trono da Rainha Jinga está dentro de dois gêneros: o policial e o histórico. Embora o autor negue a segunda categoria no posfácio, inegavelmente a obra de Mussa se filia no espírito das tramas históricas. A trama se passa em Angola, Goa e Rio de Janeiro seiscentistas e gira em torno de uma suposta heresia perpetradas por escravos negros, a heresia de Judas. Há uma galeria multifacetada de personagens: Mendo Antunes, o armador e baleeiro lusitano que enricou em terras de Goa e vai para Angola por não se adaptar aos costumes indianos. Lá chega e passa a fazer transações comerciais com a Rainha Jinga, uma africana que o impressiona por falar fluentemente o português. Gonçalo Unhão Diaz, o juiz e ouvidor geral brasileiro, que faz amizade com o baleeiro e divide com ele suas impressões sobre os supostos crimes perpetrados pelo grupo de heréticos escravos. A preconceituosa e prepotente viúva do alferes e ferreiro, que a despeito de odiar os escravos; reconhece que sobrevive às custas das esmolas de um deles: o escravo Cristóvão. Este escravo, por sua vez, tem importância na trama por ser membro da Irmandade (o grupo herético de escravos), por ser apaixonado por sua líder (a sádica escrava Ana) e por cometer desatinos com o próprio corpo em nome desse amor (como furar os olhos e queimar a língua). Outro escravo importante na trama é Inácio. Educado por padres, aparentemente cristão, culto e alfabetizado. No final da trama revelar-se-á como peça chave nas onda de crimes contra senhores brancos. Há também um curioso índio na trama. Ele é herborista e presta serviços para líder da Irmandade. Ele cria com os fármacos da mata as puçangas e o importantíssimo: divumo diazele, um “violento e letal purgante de cujo preparo especialmente me orgulho” p.73 Este veneno terá importância capital na trama, pois a encomenda da líder da Irmandade detonará uma série de crimes: “Ana conhecia a mandioca brava. Acreditei: se os portugueses trazem gente de lá, podem bem levar de cá uma planta que cresce praticamente em qualquer chão. Só estranhei quando me perguntou se eu conseguiria preparar com aquela raiz um veneno em pó, que não alterasse o paladar e a cor dos alimentos, e que tivesse um efeito tão mortal quando o da água que se esgota dela.” pp. 71-72 Há também uma feiticeira açoriana na trama amancebada com um forro velho, aleijado. A importância dela na trama é porque em sua casa onde recebe clientes brancos de várias procedências, ela receberá frades escondidos que vêm em procura de seus vaticínios. Acontecerá um crime com esses frades que é testemunhado por um dos clientes da feiticeira. “Pois eu tinha ido lá, na dessa feiticeira. Era uma mulher sibilina, perigosa, que adivinhava o futuro e preparava filtros para os males do amor, da saúde e da fortuna.” p. 25 O ESTILO NARRATIVO O Trono da Rainha Jinga é narrado por múltiplos narradores constituindo-se num romance polifônico. Isso torna a leitura rica e desafiadora, pois se o leitor não estiver atento à mudança de vozes narrativas perderá o fio da meada. O narrador onisciente só aparece em alguns capítulos quando narra as peripécias envolvendo Mendo Antunes. QUAL O PROPÓSITO DA IRMANDADE? Na pág. 49 o escravo Cristóvão explica a origem da Irmandade: “Fui dos primeiros irmãos. No início, éramos apenas três, dando fuga a escravos e roubando viandantes nas estradas. Muito dos que estão nos quilombos foram libertos por nós. Muitas das cartas de alforria adquiridas pelos padres foram pagas com o nosso dinheiro. Mas era uma subversão atormentada, sem plano. Pode-se mesmo dizer que não tínhamos um objetivo. Até o aparecimento de Ana” A HERESIA DE JUDAS O escravo Cristóvão, autor do que passa a ser conhecido nas senzalas como Heresia de Judas, explica o sentido da mesma: “Enquanto a irmandade se reestruturava, eu refletia. E compreendi, com base no seu próprio pensamento, que Ana não chegaria a lugar algum daquela forma; compreendi a verdadeira lição que se ocultava na história de Judas e Cristo. Se alguém quisesse remir a humanidade pela dor, não poderia ter permitido que esta fosse compartilhada por um outro homem. Judas sentiu em relação a Cristo o mesmo que eu, quando ajudei a trucidar aquele miserável.” pp. 50-51 “Foi quando comecei a difundir a verdade que logo ficou conhecida como a heresia de Judas. Essa verdade que passou a ser o assunto das senzalas. Porque basta um sofredor para que o bem geral se faça. Serei eu esse sofredor. Pelo amor de Ana. Ainda que ela me persiga, me expondo a prazeres que não quero suportar.” p. 51 A ATORMENTADA PSICOLOGIA DO FRADE “ADIVINHAÇÃO (gr. (lavxeía; lat. Divinatío; in. Divínation, fr. Divination; ai. Wahrsagung; it. Divinazioné). Profetização do futuro, com base na ordem necessária do mundo. Era admitida pelos estóicos, sendo, aliás, assumida como prova da existência do destino. Crisipo achava que as profecias dos adivinhos não seriam verdadeiras se as coisas todas não fossem dominadas pelo destino (EUSÉBIO, Praep. Ev., IV, 3, 136). Para Plotino, a A. é possibilitada pela ordem global do universo, graças à qual todas as coisas podem ser consideradas sinais das outras. Os astros, por exemplo, são como cartas escritas nos céus, que, mesmo desempenhando outras funções, têm o papel de indicar o futuro {Enn., II, 3, 7). A A. baseada no determinismo astrológico foi admitida pelos filósofos árabes, especialmente por Avicena, e destes passou para alguns aristotélicos do Renascimento, como p. ex. Pomponazzi {De incantationibus,10).” Dicionário de Filosofia/Nicola Abbagnano – 5ª ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2007. “Aquele que recorrer aos necromantes e aos adivinhos para se prostituir com eles, voltar-me-ei contra esse homem e o exterminarei do meio do seu povo.” Levítico 20, 6 “O homem que se deita com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação; deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles.” Levítico 20, 13 “ρονευωporneuo 1) prostituir o próprio corpo para a concupiscência de outro 2) estregar-se à relação sexual ilícita 2a) cometer fornicação 3) metáf. ser dado à idolatria, adorar ídolos 3a) deixar-se arrastar por outro à idolatria” “733 αρσενοκοιτης arsenokoites de 730 e 2845; n m 1) alguém que se deita com homem e com mulher, sodomita, homossexual” DICIONÁRIO BÍBLICO STRONG Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong - SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL Na obra chama a atenção a quantidade de brancos católicos que absorvem parte das crenças africanas, como por exemplo os clientes do calundu da feiticeira açoriana (ela mesma uma branca que absorveu a magia negra europeia com ciganaria, judiaria e as religiões tradicionais africanas devido a sua amasia com o forro que a auxilia com pontos riscados).Da qual concluímos preliminarmente que estes brancos católicos ou não entenderam o providencialismo bíblico ou não o aceitam. Mas um dos personagens mais curiosos é o frade carmelita. O frade é cliente da feiticeira açoriana. E por tal hábito ele acaba sendo visto por outro cliente, que o reconhece enquanto frade e este cliente fica horrorizado de ver um homem do clero católico frequentando um lugar como aquele: “Quando a conhecemos (porque fomos juntos eu e minha mulher) desejávamos enriquecer e não apenas deixar de passar fome. Tínhamos uma noção muito precisa do que fosse felicidade, no Rio de Janeiro, para não termos ambição. Por isso suportamos a espera no vestíbulo, abafados, amarfanhados, cercados por toda casta de gente e envolvidos por um bafio nauseabundo, até que o forro nos chamasse. A açoriana, sentada à mesa e coberta de colares e anéis de latão, tinha diante de si apenas um baralho sebento, que manipulava segundo vários métodos, naturalmente no exercício de decifrar sua mensagem.” pp. 25-26. O frade carmelita ao ser reconhecido pelo cliente o suborna com duas patacas, pedindo discrição. Vamos analisar a atormentada psicologia do frade. O frade se atormenta pela relação homossexual com outro frade chamado Francisco vaticinada pela feiticeira Açoriana, o que dá credibilidade ao trabalho dela perante o frade. E também se angustia por não esperar pela providência divina como ensina os códex do Vaticano, acabando por frequentar o calundu: “Assim, a temporalidade do mundo, de que me deveria apartar (grifo nosso), me obcecou. E me envolvi com ciganas, cabalistas, astrólogos. Até pecar.” p.93 Vejamos como o frade encara a sua homossexualidade: “Ainda não tinha enfrentado o olhar de ninguém: do prior, dos padres, dos meus companheiros de ordem (especialmente do irmão Francisco, a quem imundicei com a lama do pecado) e sequer dos escravos do convento (de quem nunca cheguei a ter suspeitas). O julgamento unânime dos homens certamente me atribuía alguma espécie de remorso ou vergonha. Talvez nem mesmo Deus houvesse de me compreender.” p. 91 A obra do jornalista João Silvério Trevisan Devassos no paraíso: (a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade) – Ed. revisada e ampliada – 6ª ed. - Rio de Janeiro: Record, 2004. - nos ajuda a entender o motivo da angustiada orientação sexual do frade carmelita. Também a obra historiográfica do antropólogo e militante gay Luís Mott sobre a homossexualidade na África lusófona e no atlântico negro é um guia para compreender os ansiosos e angustiados homossexuais seiscentistas. Como também não podemos esquecer as duras palavras do Levítico no Antigo Testamento em relação aos chamados homoafetivos, que a Bíblia nomeia pelo adjetivo genérico de sodomitas. Assim o frade confessa o gosto sodomita ao abade do convento: “Falei da minha paixão por um prazer do século. Padeço desse mal (grifo nosso) desde antes de prestar meus votos. Os corações vulgares deverão dizer que amei ou amo através da carne. Não chega a ser assim.” p. 92 Ou seja, o frade experimenta o desejo homossexual mas o sataniza, o vê de uma forma pejorativa e depreciativa. Porque como frade ele introjetou a noção de culpa que penaliza os gays no Levítico. E além de gay o Frade comete outro pecado: prostitui-se com necromantes e adivinhos. Sim! Prostitui-se! Eis o pesado verbo bíblico para quem vai num macumbeiro. Vejamos como ele afirma o seu “pecado”: “De início jogar às cartas tinha um sentido meramente lúdico. Fascinavam a expectativa do sucesso e o temor do fracasso. Mas com o envolver do tempo, passei a experimentar, em determinadas ocasiões, a convicção acentuada de estar com sorte – o que se confirmava na maioria das vezes. Por isso, porque aprendi a pressentir tais instantes, não me tornei um perdulário e não dispus da minha fortuna de família mais que o necessário para esse pequeno capricho do mundo. Não sei como começou. Mas quando dei por mim, tinha formada uma noção concreta da previsibilidade do por-vir – que não necessariamente conflitava com o livre-arbítrio. Minha tese encontrava apoio na próprias escrituras: Cristo predissera a traição de seu primeiro apóstolo. Portanto, ao menos certos passos, certos momentos, certos eventos da vida estavam escritos, traçados por uma vontade superior, senão divina.” pp. 92-93 “Porque passei a crer, porque pretendi – de livre e boa vontade – ter o domínio do futuro. Não apenas para conhecê-lo; mas para jogar com ele.” p. 93 Deste modo, vemos um homem tipicamente seiscentista. Não podemos esquecer que o Brasil - a despeito de ser produto da Renascença e do ciclo das navegações comerciais mercantilistas - vive no espírito ideológico da Idade Média. Assim vemos um frade dividido entre o racionalismo, as heresias e o apego à ortodoxia judaico-cristã. Também é digno de nota que a na Renascença ainda há a Santa Inquisição e o Santo Ofício pune severamente hereges e sodomitas. E por que seiscentista? Porque com o ciclo das navegações e a descoberta do novo mundo (o continente americano), o contato com mercadorias e ideologias da Índia e China e a escravidão compulsória dos africanos, o mundo ficou confuso, em crise de paradigmas. De repente o medievo teocentrista e judaico-cristão perdeu credibilidade no contato dos viajantes com a feitiçaria africana. Sim! O homem não deveria aceitar passivamente a providência, o destino, o fado. Poderia alterá-lo e modificá-lo com magia e despachos. Assim, o mundo europeu desestabilizou-se. E é nesse espectro do fetichismo africano, que surgem brancos como a feiticeira açoriana que não dispensa os pontos riscados do amante forro ou o frade carmelita que acredita nos seus vaticínios. A cultura africana crê na fatalidade, que o destino do homem está predeterminado e pode ser “lido”. Seja através do opelé ifá, do meridilogun (jogo de búzios), do ngombo (estranho oráculo dos povos bantófones da África meridional). Qualquer método é válido para ler o destino seja com o cauri seja com o obi ou seja com os ossos do ngombo. Porque este povo pressupõe que cada um traz o destino de berço e basta ao babalaô, ao ndoki, ao nganga decifrá-lo. O destino na cultura africana subsaariana de expressão iorubá-nagô é chamado de odu. E cabe ao babalaô olhar o búzio para saber com aquele cliente o que aconteceu no passado com um ancestral semelhante. O Brasil, representando o novo mundo, também tem suas crenças indígenas nativas onde a relação entre os vivos e mortos fazem com que todos sejam meio vivos e meio mortos ao mesmo tempo. Pois há na cultura indígena um intercâmbio quase simbiótico entre o que o vivo faz e o que o seu ancestral morto quer e deseja para ele. É desse mundo confuso seiscentista que surge um frade carmelita como o descrito pelo romancista Alberto Mussa. Se ainda hoje os gays, principalmente aqueles que introjetaram algum valor judaico-cristão dos seus pais, experimentam algum grau de culpa pelos seus hábitos sexuais, imaginem para um gay naquela época. Logo o frade gay e macumbeiro de Alberto Mussa tem total verossimilhança. CONSIDERAÇÕES FINAIS No romance O Trono da Rainha Jinga o escritor carioca Alberto Mussa patenteia sua enorme erudição que concilia etnologia, linguística africana, história colonial com um enredo cativante e final surpreendente.